As rugas e a memória da secretária de Goebbels 

<em>Uma Vida Alemã</em> é uma das estreias da reabertura do Cinema Ideal, em Lisboa. De câmara apontada ao rosto de Brunhilde Pomsel, com 103 anos, este documentário dá voz à mulher que trabalhou como secretária de Joseph Goebbels.
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A primeira curiosidade que Uma Vida Alemã traz na sua premissa é a questão de como se aborda alguém, no caso, Brunhilde Pomsel, que esteve tão próxima de uma das figuras do mal do Terceiro Reich: Joseph Goebbels. Ruga a ruga, as mãos a tapar o rosto ou de olhos fechados como quem imerge mentalmente em pormenores que magoam, embora sem verter uma lágrima, a mulher que foi secretária e estenógrafa do ministro da Propaganda nazi apresenta-se diante da câmara de quatro realizadores, aos 103 anos (morreria em 2017, aos 106), com uma lucidez que quase intimida, se não nos ficarmos pelo espanto. É que, afinal, as linhas desordenadas daquela pele vetusta, que a imagem a preto e branco realça, não correspondem a nada que se pareça com fragilidade ou um expectável balbuciar de memórias.

Christian Krönes, Olaf S. Müller, Roland Schrotthofer e Florian Weigensamer, que assinam o documentário, filmam Pomsel como um livro aberto que se dá a ler em todas as dimensões, desde a textura rugosa da "página" às palavras pesadas no exercício da "prosa" oral. Ela não está ali apenas para dar o seu testemunho sobre Goebbels ("um ator extraordinário", como lhe chama), mas para deixar registada a sua perspetiva de um momento histórico cuja evolução rápida não conseguiu acompanhar com a devida consciência na altura própria. Passado tanto tempo, é finalmente capaz de fazer uma radiografia simples do povo alemão entre as duas guerras mundiais: as pessoas levavam uma "vida tacanha" e o sentido de dever, assim como a prática da mentira, eram incutidos nas crianças.

É certo que o motivo da ascensão de Hitler não se esgota neste propício retrato popular, mas Pomsel, que viu o seu pai partir para a Grande Guerra e voltar, tem muito presente as marcas de uma geração que se deixou envolver numa posterior atmosfera enganosa; "foi algo que simplesmente aconteceu", diz a certa altura. Ao longo de Uma Vida Alemã, são várias as vezes em que se enquadra a si própria nesta noção de inevitabilidade do destino, devido ao seu perfil passivo, apolítico, uma assumida cobardia e o modo superficial como via a realidade à sua volta, entre pessoas bem vestidas e o ambiente agradável do gabinete, já para não falar do salário. Antes de trabalhar "para" Goebbels - e não "com" Goebbels, como sublinha - chegou a ser funcionária no escritório de um advogado judeu, e uma das suas amigas era também judia.

Se isso a faz sentir-se culpada? Brunhilde Pomsel considera-se tão culpada como qualquer cidadão alemão. O que significa dizer que não pinta uma postura com falsos remorsos, porque, ao contrário da perceção geral, (re)afirma uma condição de ignorância: ela estava do lado de fora do segredo dos campos de concentração. Estava atrás das portas, mas não era de escutar ou espreitar pelo buraco da fechadura. Muito menos de abrir pastas de processos que não lhe diziam respeito, mesmo que por uma fração de segundo se pudesse sentir tentada. Sobretudo, ela reconstrói a sua longa vida alemã num discurso direto que, tacitamente, reenvia a pergunta para o espectador: e você, sentir-se-ia culpado?

De resto, a sensação de desconforto faz parte de Uma Vida Alemã. Não só porque somos impelidos a analisar os gestos e palavras de Pomsel, tal como numa peça de teatro (não por acaso, o documentário foi mesmo levado ao palco, com uma performance da atriz veterana Maggie Smith), mas também porque os realizadores não se limitaram ao valor da sua história, intercalando o depoimento individual com arquivos sonoros ou de imagem que ilustram, uns com mais violência do que outros, a verdade coletiva. A dona desta "vida alemã" não é uma peça de museu para se observar à distância, mas um rosto cinzelado pelo tempo que se presta, sem medo, ao julgamento alheio, com a morte no horizonte e o passado mais vívido do que nunca.

*** Bom

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