As primeiras maravilhas portuguesas na Berlinale

Em Berlim já se sabia que a comitiva portuguesa era forte, mas nada nos preparava para a desconcertante experiência cromática de <em>Super Natural,</em> de Jorge Jácome nem para o filme dentro do filme de<em> Um Trio em Mi Bemol</em>, de Rita Azevedo Gomes...
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O centro nevrálgico do festival para a imprensa é a área da Postdamer Platz, local onde também decorrem as sessões de gala no gigante Berlinale Palast, mas este ano, mais do que nunca, é noutras áreas da cidade onde se sente mais a vibração do festival. Por tradição, este é um festival para a cidade, para todos. Na verdade, é rara a sessão que não está esgotada. O que espanta desta vez é o deserto de gente na área da Postdamer, parte da cidade que voltou a ser uma terra de ninguém com restaurantes, centros comerciais e cinemas fechados. O covid e erros urbanísticos mataram um novo centro da cidade e com isso a Berlinale está mais despida, mais triste.

Felizmente, há o cinema português para contagiar os festivaleiros com vibrações positivas. E, este ano, a comitiva é geralmente muito forte, a começar pela primeira longa de Jorge Jácome, Super Natural, mostrada do Fórum. Uma obra experimental entre o ensaio gráfico e o poema do real, escrita em co-autoria com o Teatro Praga. Trata-se de uma porta transcendental que propõe um diálogo sobre a saída da alma do corpo, um olhar performativo através de uma residência na Madeira com o grupo Dançando com a Diferença.

Jácome filma possibilidades de uma história de uma fusão invisível de seres invisíveis com a matéria do "natural", ou seja, com o ar, a natureza e a água. Elementos que servem para a instalação de uma proposta poética perto da ficção-científica. Nos seus piores momentos, podemos pensar que se trata de um filme experimental a querer ser fofinho, mas na maior do tempo toda aquela conjugação de arco-íris, imagens subaquáticas, animação, explosões cromáticas; etc, levam-nos para um desejo de captar o infinito invisível, ou seja, o evento de uma coleção de imagens novas. Quer se entre ou não neste insondável diálogo com enigmas, Super Natural é a confirmação de uma nova voz do cinema português, Jorge Jácome, que depois de curtas com potencial tem agora uma estreia no formato longo relevante. Uma estreia daquelas que pode revelar um inovador sistema de cinema. Só se recomenda que o espetador esteja preparado para uma voz off protagonista que avisa que pode ser um close-up de um anus ou uma descarga de sanita...

Já Rita Azevedo Gomes vai para um outro jogo, o da palavra na adaptação da peça de Éric Rohmer, Um Trio em Mi Bemol, no qual o teatro e o cinema esgrimem um braço de ferro tão elegante como insinuante. Numa casa minhota à beira-mar, uma mulher visita o seu ex-companheiro para lhe contar sobre a sua nova vida amorosa. De repente, ouvimos um "corta" de um realizador com sotaque espanhol. Estamos, afinal, num plateau de um filme onde todos têm dúvidas existenciais. Claro que se trata de um exercício de alta cultura pedante, snob mas com uma divertida consciência disso mesmo. É esse o charme discreto de um filme onde a degustação das palavras de Rohmer resulta que nem ginjas através de interpretações notáveis de atores como Pierre Léon e Rita Durão.

Mais divertido do que se poderia imaginar, Um Trio em Mi Bemol é, a par com Frágil como o Mundo, o melhor filme de Rita Azevedo Gomes. Uma prova de crença dos prazeres de se mostrar a criação do cinema. Um cinema que é um autêntico ato de fé...

Na competição, o austríaco Ulrich Seidl não deslumbrou com Rimini, um drama de pai e filha em Itália. O cineasta de Na Cave dá-se mal com o excesso de fascínio pela canção pimba germânica neste retrato de um cantor romântico em declínio que ganha a vida a dar prazer sexual a senhoras de terceira idade. Melodrama no templo do realismo filmado com um lascivo voyeurismo.

Em oposição, fora de competição, cinema de terror de um mestre veterano, Dario Argento, presente aqui com Occhiali Neri, história de uma atração diabólica de um serial killer com uma prostituta de instintos maternais. Dentro das regras do "giallo", género do terror italiano que Argento foi um dos criadores, o realizador italiano filma uma narrativa de medo com uma alta intensidade muito bem oleada. Claro que temos gargantas cortadas, humor provocador e muito, muito sangue. Um festival de nostalgia por um cinema que talvez já seja peça de museu. Ainda assim, uma nostalgia revitalizada.

E já que se menciona cinema extremo, o que dizer de Flux Gourmet, de Peter Strickland? Um filme sobre uma residência de experiência coletiva de culinária, onde um grupo performativo cozinha e cria sons com a comida. São "sonic caterers" que também estão dispostos a experiências sexuais.

Strickland, conhecido pelos seus guiões insanos, não se afasta do gosto pelo repulsivo mas fá-lo com uma ideia de diversão escatológica que não há memória. Flux Gourmet é até à data a ave rara do festival e a sua vibração de filme de horror de sessão da meia-noite é bem capaz de lhe dar uma vida de culto...

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