O trabalho da dupla artística Joana Hadjithomas e Khalil Joreige, que conhecíamos pela longa-metragem Eu Quero Ver (2008), tem-se definido por uma persistente abordagem às feridas interiores causadas pela guerra civil libanesa. Não é por isso de estranhar que seja na linha desse projeto maior do seu cinema que surge Caixa de Memórias, um filme que adapta correspondência da própria Hadjithomas (entre 1982 e 1988) a uma pequena ficção, um drama geracional, para dar conta da importância de se transmitir o passado dentro do seio familiar, por mais difícil que seja regressar a ele, ou colocar em palavras traumas enterrados..O título é para levar à letra. Caixa de Memórias é sobre uma misteriosa caixa de papelão, com remetente francês, que chega a uma morada em Montreal, gerando um silêncio incómodo entre três mulheres: Maia, a destinatária, Alex, a sua filha adolescente, e Teta, a avó que cheirou a tristeza do conteúdo antes mesmo de este ser revelado aos nossos olhos. Lá dentro está a própria adolescência de Maia, intacta nos cadernos, fotografias e cassetes áudio com gravações suas que enviou à melhor amiga quando esta partiu do Líbano. Coisas que, supostamente, só dizem respeito a ela. Mas a filha é de outra opinião; sente-se no direito de saber que segredos esconde essa memorabília. Impedida pela mãe de sequer espreitar, começa a sua aventura sigilosa de desobediência, fechando-se no quarto com o fruto proibido....O retrato da adolescente Maia, numa Beirute assombrada pela guerra, vem assim em clarões de memória e imaginação produzidas pelo material analógico que os realizadores animam no ecrã. Como se o tratamento criativo dessas imagens fosse a única maneira possível de aceder à vida que fervilhou no meio dos bombardeamentos, com destaque para as escapadelas da primeira paixão de Maia. "Acho que foi esse amor que nos salvou da loucura que nos rodeava", ouvimo-la dizer a certa altura. E é essa qualidade "mágica" - também presente num título do ano passado, Céus do Líbano, de Chloé Mazlo - que torna Caixa de Memórias uma doce e dolente viagem no tempo, ao som de temas como Fade to Grey, dos Visage..Porém, e apesar de sermos transportados pela textura das memórias, o filme não tem a mesma força do lado de cá, isto é, enquanto drama geracional. A mãe, filha e avó que se confrontam com a existência da caixa não são personagens suficientemente desenvolvidas para que as suas interações, medos e chagas antigas criem verdadeira ressonância emocional. Nesse sentido, Caixa de Memórias é muito mais conseguido enquanto elogio do gosto pela documentação da intimidade - veja-se como Alex, à semelhança da mãe, tem o "impulso das imagens", e cada uma se expressa com a tecnologia do seu tempo. Entre os suportes físicos e o digital, Hadjithomas e Joreige laboram aqui uma questão importante sobre a partilha que muitas vezes não tem lugar entre pais e filhos, como se uma geração considerasse que a outra não está em pé de igualdade para se compreenderem. Por essa razão, este é um filme que mostra a importância da desobediência ocasional e o valor da curiosidade..dnot@dn.pt