As famílias infelizes são-no cada uma à sua maneira

Depois da comédia <em>A Felicidade das Pequenas Coisas</em>, Daniele Luchetti volta-se para o território do drama. <em>Laços de Família </em>é o cinema a auscultar uma tentativa de divórcio à italiana, envolvida pela amargura de um poema de Philip Larkin.
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Quando fez a abertura do último Festival de Veneza, Laços de Família foi imediatamente comparado ao Marriage Story de Noah Baumbach, surgindo como uma espécie de parente pobre europeu desse badalado título americano. Esclareça-se: a comparação deve-se mais ao assunto - um casal a lidar com o fantasma do divórcio - do que àquilo que acontece no grande ecrã. O filme do italiano Daniele Luchetti tem outros parentescos. Desde logo, parece saído de um livro de Elena Ferrante, com a sua textura de drama napolitano e o rosto da atriz Alba Rohrwacher a condensar a infelicidade doméstica como se fosse uma versão passivo-agressiva de Anna Magnani. E esta impressão literária, este não-sei-quê dos romances napolitanos, tem razão de ser. Afinal, Laços de Família baseia-se num livro de Domenico Starnone, escritor com uma ligação ao fenómeno da identidade escondida de Ferrante. O que é que há de específico na prosa de ambos? Uma certa maneira de sondar as feridas mais profundas das relações humanas, seja entre amigos ou familiares.

Começando na Nápoles dos anos 1980, o filme contempla um período de trinta anos, com cenas da vida de um casal abandonado pelo amor. Vanda (Rohrwacher, magnífica) e Aldo (Luigi Lo Cascio) têm dois filhos e separam-se na noite em que ele lhe revela que a traiu. Ou melhor, ela expulsa-o de casa, mas não o deixa ir à sua vida, usando a família como um argumento desalmado para o fazer voltar: "Não é apenas uma questão de amor, é uma questão de lealdade." Que é como quem diz: os tais laços de família hão-de danar-se e perder a referência emocional pelo meio de um impasse destrutivo com sequelas a longo prazo para as crianças.

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Filmar este quadro dramático com a precisão de quem faz a autópsia da mágoa arrastada de um casal, e a sua silenciosa transmissão aos filhos, é o grande mérito de Daniele Luchetti, cineasta com altos e baixos, mas aqui muito seguro na gestão de um vai e vem cronológico que adensa a ideia da miséria interior das famílias infelizes. Lev Tolstói escreveu, em Anna Karénina, que "cada família infeliz é infeliz à sua maneira." E se de facto há uma fisionomia para cada família infeliz, Luchetti observa-a com um pudor notável. Veja-se a cena em que Vanda entra no estúdio de rádio onde Aldo trabalha como autor de um programa literário e é retirado o som ao início da discussão entre os dois, captada num plano mudo enquadrado pelo vidro da cabine; ou aquela em que os miúdos testemunham, através dos vidros do carro, o momento de impulso desesperado da mãe que ataca o marido e a sua outra mulher no meio da rua...

São cenas que definem um filme e, sobretudo, uma tristeza feita de cinema - em vez de um cinema que imita a tristeza. Pode parecer pouco, mas é preciso coragem para não ceder ao reconforto emocional. A beleza do romance napolitano em Laços de Família está muito na sua própria fealdade, numa amargura seca que se corresponde intimamente com um poema de Philip Larkin. Nos últimos versos lê-se: "(...) E assim é legada a felicidade,/Vai mais e mais fundo, como o fundo do mar./Foge mal tenhas oportunidade/E quanto a teres filhos - isso nem pensar."

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