As curtas de Godard também são grandes filmes

Uma secção especial do <strong>Curtas Vila do Conde</strong> dá a conhecer várias experiências de Jean-Luc Godard à margem dos filmes de fundo: desde os trailers desses filmes até trabalhos em vídeo de invulgar ousadia experimental.
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Na edição deste ano do Curtas Vila do Conde (que encerra este domingo), Jean-Luc Godard está em foco através de uma seleção de... curtas-metragens. Mais exatamente, a historiadora e ensaísta Nicole Brenez fez uma escolha de pequenos filmes do cineasta de Pedro, o Louco, Paixão ou Adeus à Linguagem, tanto mais sugestiva quanto inclui mais de duas dezenas de trailers das suas longas-metragens.

Desde o seu segundo filme de fundo, Uma Mulher É uma Mulher (1961), Godard tem sido também um criador de trailers que transcendem a mera condição de spots promocionais. Claro que há, como sempre, um propósito publicitário em tais trailers, mas entendido e trabalhado como um exercício de discussão das próprias linguagens dominantes no próprio domínio publicitário.

Por exemplo, em meados da década de 60, Godard promove duas longas-metragens que rodou em simultâneo - Made in USA e Deux ou Trois Choses que Je Sais d"Elle - através de trailers que, denunciando o "excesso de ruído" da nossa civilização se apresentam realmente... em silêncio, sem qualquer som [ver vídeo].

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Para lá da brevidade dos trailers, importa destacar duas preciosidades, raríssimas, também vistas em Vila do Conde: Puissance de la Parole (1988) e Le Rapport Darty (1989). Ambas resultaram de encomendas: a primeira da companhia France Télécom, no sentido de promover um novo sistema de ligações por satélite; a segunda da sociedade Darty, proprietária de grandes lojas vocacionadas, sobretudo, para a venda de eletrodomésticos. E ambas foram rejeitadas pelas entidades que encomendaram o trabalho, considerando que não ilustravam adequadamente a sua filosofia empresarial.

No primeiro caso, Godard encena as comunicações por telefone (o "poder da palavra" a que o título se refere) como qualquer coisa que não pode ser dissociada de muitas formas de solidão individual - ou como a proliferação de canais de informação não significa que todos sejamos transparentes e obrigatoriamente felizes. O segundo filme, em forma de "relatório", faz um inventário das formas dominantes de consumo e, em particular, das ilusões de plenitude (sobretudo através do comércio corrente das imagens) que criam e promovem.

São testemunhos historicamente tanto mais importantes quanto surgem na fase em que Godard passa a aplicar com regularidade os meios específicos do video, integrando e manipulando as imagens através dos respetivos recursos técnicos - por exemplo, as sobreposições tornam-se cada vez mais frequentes, explorando inusitados efeitos informativos e poéticos.

Foi, aliás, por essa altura, que Godard iniciou a sua obra monumental História(s) do Cinema, um radical projeto videográfico-cinematográfico, que só viria a ficar concluída cerca de uma década mais tarde, em 1999. Com durações "moderadas" (25 e 40 minutos, respetivamente), encontramos em Puissance de la Parole e Le Rapport Darty a grandeza cinematográfica de um verdadeiro experimentador, sempre empenhado em analisar o que somos, como comunicamos, que valores trocamos no nosso dia a dia.

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