As cidades resistem
As cidades adormeceram.
As distopias materializaram-se e o silêncio domina as ruas. Bancos de jardim impedidos, forças policiais a encaminhar pessoas para casa, desinfeção dos passeios, lojas fechadas, limites ao número de pessoas no mesmo espaço, distanciamento social. Afinal a matéria de que são feitas as cidades tornou-se território interdito: pessoas e proximidade.
Este processo de fazer hibernar as cidades é estranho a uma civilização que se foi progressivamente urbanizando e coloca-nos perante um desconforto igual ou superior ao de estar confinado às quatro paredes de casa. Um desconforto que resulta desta sensação de consternação perante o paradoxo que observamos das janelas: a cidade está em confronto consigo própria. Ela existe porque aproxima. Ela constitui-se pelo número e pela densidade de pessoas. Ela respira melhor quanto mais fervilhar de atividade. Mas hoje, o que vemos da janela, são ruas vazias, pessoas que caminham sozinhas, máscaras e silêncios.
Imagino os gnomos de Wroclaw, na Polónia. Mais de 350 gnomos para encontrar nos recantos da cidade. Pequenas estatuetas de bronze, com menos de 30 cm, representando os simpáticos seres nas mais diversas atividades possíveis, surpreendem os visitantes. Uns escondem-se nos recantos, outros atrás de uma sebe. Alguns, mais corajosos, saúdam-nos com um sorriso sabido. Hoje estão sozinhos, sem visitantes para os fotografar. São a força de resistência da cidade. Um exército de bravos persistentes que aguardam o regresso do ruído e do movimento. Todas as nossas cidades aguardam este regresso.
Mas as cidades sempre se souberam reinventar. Crises económicas profundas, calamidades naturais, pestes incontroláveis, incêndios devastadores, guerras e bombardeamentos. Dresden, Mostar, Varsóvia, Lisboa, Berlim, Londres, Roterdão, Hiroshima. A lista é interminável. A história de um número significativo de cidades é a da memória da destruição e do reerguer posterior. Hoje não assistimos à destruição, mas é necessário reerguer as nossas cidades.
E sairemos para gritar liberdade e para agradecer a quem resiste, como os gnomos de Wroclaw, nas frentes mais difíceis desta distopia: nos hospitais, nos centros de saúde, nas cidades cercadas.