Não há mulheres narigudas vestidas de preto a voar em cima de vassouras nem há caldeirões borbulhantes. Elas usam perucas, porque são carecas, e luvas para esconder as garras, deslocam-se como gente normal, e a poção mágica está distribuída por frasquinhos mantidos em baldes de gelo para champanhe. Dito de outra maneira: As Bruxas de Roald Dahl estão de regresso ao grande ecrã pela mão do "feiticeiro digital" Robert Zemeckis, com Anne Hathaway, espampanante, a liderar o exército de malvadas que querem eliminar as crianças da face da Terra..Quem conhece o imaginário do escritor Roald Dahl estará familiarizado com as suas visões literárias pouco infantis, ainda que seja o público infantil o alvo das histórias. As Bruxas, lançado em 1983, é um desses livros que contêm os elementos certos para uma recriação cinematográfica: a narrativa é simples mas oferece imagens de terror e fantasia que tanto seduzem como assustam. Não admira por isso que Guillermo del Toro, coprodutor e um dos argumentistas deste novo filme, tivesse sido o primeiro a pegar na ideia de uma adaptação depois da de Nicholas Roeg, em 1990. O realizador mexicano, que vai colecionando monstros no seu cinema, começou mesmo a trabalhar numa animação stop motion, mas desistiu e acabou por transferir o seu gosto para a versão de Zemeckis, por sua vez, mais voltado para as possibilidades do digital que tem vindo a explorar persistentemente desde Polar Express (2004), com outras proezas anteriores como Quem Tramou Roger Rabbit? (1988)..YouTubeyoutube4rLuFiTl7q4.As Bruxas de Roald Dahl tem, assim, uma espécie de identidade mista. Por um lado, há imagens que podem realmente ser um bocadinho perturbadoras para os mais novos (é o toque do realizador de O Labirinto do Fauno); por outro, a primazia técnica e o doce sentido da fábula tornam a experiência muito menos traumática (aqui é Zemeckis). O problema é que, entre uma coisa e outra, o filme cai na ratoeira do convencional a tentar ser bizarro. .Desta vez, a história passa-se em território americano (originalmente era Inglaterra), finais da década de 1960, e o narrador é alguém com testemunho de vida: sentiu na pele a maldade das bruxas. Enquanto ele explica a uma audiência de crianças como reconhecer essas feiticeiras perversas no dia-a-dia, somos levados ao Natal em que, ainda menino, perdeu os pais num acidente de viação, passando a ficar ao cuidado da avó materna (uma ternurenta Octavia Spencer) - também neste retrato de avó e neto, ambos negros, acrescenta-se uma nuance racial que dantes não era contemplada..Um dia, num supermercado, a criança é abordada por uma mulher que lhe oferece um caramelo, ao mesmo tempo que uma serpente se enrola no seu braço coberto por uma luva de cetim... Quando descreve o episódio assustador à avó, esta reconhece o estilo e conta-lhe a história da menina que ela própria viu ser transformada em galinha por uma dessas mulheres, chegando à conclusão de que é urgente sair da cidade por uns dias. Para onde? Um hotel de cinco estrelas, "porque as bruxas só atacam os pobres". Isso pensa ela..A festa está montada. Avó e neto fazem o check-in e logo depois chega a Grande Bruxa-Mor (Hathaway), com postura de Cruella de Vil e um sorriso de Joker na manga, acompanhada de uma comitiva maléfica que vai reunir-se num salão sob o irónico disfarce de um evento de caridade para "prevenção da crueldade contra as crianças". Enquanto explora os espaços vazios do hotel, o nosso pequeno herói é apanhado no meio de uma convenção de bruxas, assistindo involuntariamente ao espetáculo medonho da remoção dos adereços que as fazem parecer pessoas "normais", e correndo pela vida quando dão pela sua presença e o querem transformar em rato..Esta cena fabulosa do conto de Dahl, que na versão de As Bruxas de Nicolas Roeg tem Anjelica Huston a revelar uma criatura hedionda por trás da sua aparência sensual - ela, sim, uma Bruxa-Mor perfeita, sem a expressividade supérflua que Hathaway ostenta -, é reconstituída por Zemeckis com uma desinspiração mágica. Onde Roeg apostava tudo no magnetismo da sua atriz e numa mistura estranha de realismo com fantasia negra, Zemeckis usa e abusa do CGI para mostrar que a sua bruxa voa e tem um poder destruidor digno de vilão de super-heróis... Diga-se em abono da arte do realizador de Regresso ao Futuro que há, de facto, um requinte técnico capaz de sustentar o interesse, mas falta aqui a imaginação livre, a câmara embruxada, em suma, o génio despenteado do filme de 1990..** Com interesse