Arrábida: entre o tempo e a eternidade
A Arrábida é um dos territórios nacionais com maior presença simbólica na consciência coletiva. A delimitação, na sua área geográfica, de um Parque Natural (PNA), celebrou 40 anos no passado dia 28 de julho. O PNA foi alargado em 1998 à área marinha protegida Arrábida-Espichel, que tomou o nome do saudoso cientista Luiz Saldanha. Tudo isso são etapas importantes, mas apenas parte de uma história muito mais vasta e diversificada. A criação do PNA foi um triunfo, mas o fracasso da candidatura da Arrábida a Património Mundial Misto da UNESCO constituiu um desaire de onde se podem retirar lições. Basta percorrer os escombros lunares de muitas pedreiras nos arredores de Sesimbra, para perceber que há apetites excessivos incompatíveis com títulos de virtude.
No plano mais objetivo, aquele que só através do estudo científico pode ser alcançado, a Arrábida é uma joia natural por múltiplas razões. Geologicamente, contém traços evidentes das grandes movimentações das placas tectónicas que explicam a diferente fisionomia da história planetária. Geográfica e climaticamente, é um dos exemplos da extrema diversidade do território português. O mesmo se pode dizer sobre a fauna e a flora, com uma assinatura própria, seja em terra como no mar, onde as águas costeiras imitam a função de berçário dos estuários, servindo alimento e abrigo para uma grande variedade de espécies marinhas. Mas existe também a história, marcada no património construído, e o sopro de espírito que, exalado do azul oceânico, sobe pela serrania calcária, cristalizando-se nas páginas do misticismo religioso ou da exaltação poética e literária.
Um contributo para o conhecimento das representações literárias da Arrábida foi dado por António Vilhena e Daniel Pires, através de sucessivas edições da sua obra, A Serra da Arrábida na Literatura Portuguesa. Trata-se de uma magnífica antologia de poetas nacionais, contendo textos que vão de 1554 até à atualidade, tendo como centro de referência a "Serra-Mãe", no dizer de Sebastião da Gama, ou o "Altar de Portugal", na expressão de Teixeira de Pascoaes. Essa antologia inclui autores clássicos, como Frei Agostinho da Cruz, Alexandre Herculano, Sebastião da Gama, Miguel Torga, mas também assinala a presença de nomes contemporâneos nacionalmente consagrados, como António Osório, Fernando Gandra, Helder Moura Pereira, entre outros.
O que importa colocar em relevo é o permanente convite da Arrábida para a meditação e a viagem interior. A serenidade apolínea das suas falésias não se confunde com a natureza em estado selvagem (Wilderness), que ainda se pode encontrar em áreas da América ou de África. Na Arrábida experimenta-se uma paisagem de limite, de passagem, uma espécie de portal para a transcendência. Tanto como um lugar para o encontro místico por excelência, numa versão teológica mais convencional: "Aqui com mais suave compostura/ Menos contradição, mais clara vista/ Verei o Criador na criatura" (Agostinho da Cruz). Como veículo para uma exaltação quase panteísta, como em Sebastião da Gama: "Ausentei-me de aqui, de corpo e alma/ diluí-me na paisagem/ e a rocha ficou vazia/ com ar, só ar /com ar, só ar, em cima dela/ Ora, porque será que estou ainda a vê-la/ a Tarde/ porque será que a vejo como, de cima do rochedo, a via/ se eu afinal já sou ela?" (Inédito de 20.07.1944).
Mas a Arrábida celebra também o envolvimento no mundo, nas grandes causas coletivas. Sebastião da Gama, desaparecido aos 27 anos, foi também um intenso combatente pela proteção da Arrábida. Em 1947, a Mata do Solitário, uma joia botânica hoje com o estatuto de reserva integral, estava a ser delapidada como combustível para um vulgar forno de cal. Gama escreve para a imprensa e para figuras influentes. Ficou célebre uma fulminante missiva: "Senhor Engº. Miguel Neves. Socorro! Socorro! Socorro...O José Júlio da Costa [proprietário de um forno de cal] começou (e vai já adiantada) a destruição da metade da Mata do Solitário que lhe pertence. Peço-lhe que trate imediatamente. Se for necessário restaure-se a pena de morte. SOCORRO!" (23 de Agosto de 1947). O Professor Baeta Neves, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, assumiria como sua, esta luta, e em 1948, nasceria a Liga para a Proteção da Natureza (LPN), a primeira organização ambientalista nacional. Aliás, logo após o 25 de Abril, seriam alguns jovens setubalenses ligados à LPN, os principais ativistas pela criação do Parque Natural da Arrábida.