"Aqui uma pessoa até se esquece de que é pobre"
Joaquina Batista e Joaquim Correia abalaram cedo de casa, em Lousada, no distrito do Porto, para chegarem também cedo a Fátima, onde passam os poucos dias de férias que têm. É terça-feira, o primeiro dia de calor desta semana, e o casal está a pôr a mesa para o almoço. Coisa simples, hoje: uma salada de grão com atum e ovo cozido. Vão ficar por quatro ou cinco dias, como fazem sempre, desde que se casaram, "já lá vão 36 anos"; e não se imaginam a acampar noutro local. O casal, na casa dos 50 anos, faz parte das centenas de famílias que todos os anos aliam o descanso à oração, num registo de campismo selvagem não autorizado pelo Santuário de Fátima.
"Isto aqui é uma estupidez", há de dizer mais tarde ao DN Emanuel Sousa, um feirante de Paços de Ferreira, que ocupa o topo de uma das mesas daqueles parques de merendas e lazer que ladeiam os de estacionamento. É aí que nos últimos anos estes peregrinos/turistas armam as tendas, à medida que o santuário foi cimentando o espaço mais próximo da basílica. Emanuel e a família (num total de 12 pessoas) não desistem de gozar ali os poucos dias de férias que têm: "As pessoas têm de acampar em algum lado. Por isso o que nós fazemos nos últimos anos é acampar onde vemos que já está gente. Se nos vierem tirar daqui... têm de tirar todos. Porque nem toda a gente tem boa vida para ir para um hotel", diz ao DN. Está habituado a acampar por toda a parte, como lembra a mulher, Juliana, ao cabo de uma vida em feiras, festas e romarias do norte, com a barraquinha de tiro que dá prémios em forma de peluches.
Por toda a parte há placas que anunciam a proibição de acampar, mas nada demove estes devotos da Senhora de Fátima, que não abdicam de dormir "o mais perto possível" do santuário.
O grupo de Paços de Ferreira é bastante heterogéneo: crianças pequenas brincam nas tendas, jovens de 25 e 27 anos ouvem as histórias dos mais velhos e contam ao DN memórias de infância, pois que fazem assim as férias desde pequenos. António Sousa, pai de um deles, leva mais de 20 anos nesta condição de turista/peregrino. "Como só tenho dois ou três dias de férias, gosto de estar aqui, sinto-me aqui bem." Foi ele o primeiro do grupo a começar com este acampamento, mais tarde o irmão Emanuel decidiu juntar-se. Foi há dez anos, quando um grave acidente de viação (em que morreram duas pessoas) o deixou muito maltratado. "No ano seguinte vim agradecer a Fátima ter recuperado tão bem." E assim passou a fazer parte do acampamento.
Ao lado de Emanuel e de Juliana está Maria de Fátima, a sogra, de 68 anos. Tem mobilidade reduzida, desloca-se ora em cadeira de rodas ora com a ajuda de canadianas, mas continua fascinada pelos dias de convívio com a família. Nada a apoquenta, nem dormir no chão.
O despertar da família Sousa é cedo, já que o sino da Basílica do Rosário toca pela primeira vez às sete da manhã, servindo-lhes de despertador. Depois, há uma rotina mais ou menos estabelecida: passam pelo santuário (como quase todos), passeiam pela cidade e fazem uma caminhada até Valinhos, nas imediações. Novos e velhos, tudo passeia por Fátima. No regresso à capital do móvel, há sempre tempo para uma visita. No ano passado foi ao Luso e à Mata Nacional do Buçaco, neste ano vão mostrar o Portugal dos Pequenitos (Coimbra) aos mais novos. Quando chegarem a Paços de Ferreira acontece uma espécie de render da guarda: o irmão que não veio - por ter ficado a tomar conta do café da família - pode embalar a trouxa a zarpar. Rumo a Fátima, também.
O casal Joaquim e Joaquina almoça a poucos metros da família Sousa. À medida que percorrermos o parque de lazer percebe-se que quase todas as famílias mantêm os mesmos hábitos, por ali, exceção feita a uma idosa que prefere não falar aos jornalistas. O espaço que ocupa é quase uma habitação permanente, com móveis e tudo, pelo que a tenda deixa antever. Cá fora, vai mexendo um refogado num tacho de alumínio, junto a uma corda onde enxugam várias peças de roupa.
O casal de Lousada vai ao santuário logo de manhã, depois "damos uma volta, cumprimos as nossas orações, depois almoçamos e vamos até Nazaré, passear, ou conhecer outros sítios. À noite gostamos de ir rezar o terço e assistir à procissão das velas", conta Joaquim Correia. As duas filhas acompanharam-nos anos a fio, mas agora "já têm a vida delas. No ano passado vieram, com os maridos e as nossas netas, neste ano não calhou. Sabe, aqui uma pessoa até se esquece de que é pobre".
Andreia, Carla, Susana e Samuel são os quatro irmãos da família Rodrigues, com origens em Castelo de Paiva. Três deles são emigrantes, e por esta altura juntam todo o agregado familiar (incluindo os pais) e rumam a Fátima. Montam cinco tendas (uma por casal), mais um toldo avançado que lhes serve de cozinha. É ali que preparam as refeições para as 14 pessoas que compõem o grupo.
Começaram por ir em julho, mas acabaram por mudar o acampamento para agosto. Lá dentro há um tabuleiro de febras temperadas, prontas para fritar, e duas das mulheres do grupo vão ralando cenouras para uma taça que há de colher uma gigante salada.
Andreia é emigrante em França, na região de Paris, onde é proprietária de uma empresa de apoio domiciliário. Ela, os irmãos, os filhos e os pais partiram de Castelo de Paiva na madrugada de sábado e chegaram a Fátima pelas oito da manhã, quatro horas de viagem depois. E afinal, porque é que vão para Fátima acampar e não para a praia ou para o campo?
"Aqui é um sítio calmo, mais sossegado, é outro ambiente", justifica Andreia. As crianças foram nascendo neste ritmo, "alguns vinham dentro da barriga, quando nasceram já estavam habituados".
A família Rodrigues dedica sempre a manhã às compras, e logo depois vai fazer o almoço. Fazem todas as refeições ali, raramente vão buscar comida feita. "É a única altura em que nos juntamos todos. É por isso que gostamos tanto de vir", sublinha uma das irmãs. Conhecem as praias fluviais das redondezas, como o Agroal, pois todos os anos "tentamos conhecer um sítio novo, diferente", conta Andreia. Terminam o dia a rezar o terço, na Capelinha das Aparições.
Lurdes Pinto ajeita o avental e chama pelo marido, Filipe Marques, 39 anos, orçamentista de profissão, quem começou, afinal, esta cruzada. O grupo está sempre a crescer, agora que os filhos mais velhos "já trazem com eles as namoradas", conta Lurdes.
Quando o filho nasceu, há 13 anos, Filipe fez uma promessa à Senhora de Fátima: "Se corresse tudo bem eu vinha cá três anos seguidos. Só que acabámos por continuar a vir." Simão, o filho, ouve atentamente a história enquanto espera pelo almoço, de como os pais e os tios começaram por ir no 10 de Junho, transferindo mais tarde o acampamento para agosto, a partir do dia 15.
Um mês antes, o grupo faz uma pequena reunião para decidir quando marcar as férias. Ficam por ali três ou quatro dias. Montam a tenda e vão conhecer a região.
"É o convívio que nos traz aqui", conta Filipe, secundado por outros membros das famílias Torres e Veiga, que o acompanham. Vão todos os dias ao santuário, por vezes duas ou três vezes.
O grupo dá nas vistas no parque porque todos os elementos vestem todos de vermelho. "Como somos muitos, assim não nos perdemos de vista", explica Lurdes, pois que a cada ano o grupo escolhe uma cor diferente. Regressam a Braga nesta sexta-feira, prontos para mais um ano movido a fé.
Nas imediações daqueles parques de lazer que circundam os de estacionamento há balneários à disposição dos peregrinos. É esse espaço que estes campistas usam, e não se cansam de elogiar "as condições". "Aqui não pagamos nada, por enquanto."
O Santuário de Fátima prefere não se pronunciar sobre o delicado tema: se por um lado pugna pela proibição, por outro "não pode mandar as pessoas embora", diz ao DN fonte conhecedora do processo. À exceção dos parque criados ocasionalmente, como aconteceu com dois para a visita do Papa Francisco, não há qualquer parque de campismo legalizado na zona. Os parques de que o santuário é proprietário, seja os que envolvem o recinto e que estão requalificados - com melhorias substanciais na pavimentação, arborização e construção de mobiliário e instalações sanitárias - seja os que estão por detrás do Centro Paulo VI e que ainda são de terra batida, são parques de acolhimento de peregrinos e não de campismo. "De facto, sobretudo nestes, o campismo é proibido, mas as pessoas não têm alternativa", acrescenta a mesma fonte.
O DN questionou ainda o município de Ourém a este respeito, que declinou qualquer responsabilidade, considerando que os parques são pertença e responsabilidade do Santuário de Fátima.