O retumbante sucesso de Gambito de Dama parece ter dado a qualquer produção com a presença de Anya Taylor-Joy um carimbo de qualidade. E isso é válido mesmo para uma produção de 2017, como este O Miniaturista, minissérie da BBC acabada de chegar à plataforma Filmin, que claramente aproveitou o embalo da impressão causada pela menina prodígio do xadrez, embora também aqui se encontre uma muito austera Romola Garai, a atriz que abrilhanta Miss Marx, uma das estreias recentes nas nossas salas. Em todo o caso, a protagonista é Taylor-Joy, na pose segura que a distingue, e que, no caso, parece saída de um quadro de Vermeer. Figurinos vistosos, um ambiente meticulosamente elaborado, uma boa história e interpretações que evoluem ao longo de três episódios fazem valer o convite para entrar nesta casa de bonecas..Adaptação do best-seller da britânica Jessie Burton, O Miniaturista leva-nos à Amesterdão de 1686, quando a vida da cidade refletia as suas ambições comerciais. Acabada de chegar à casa do futuro marido, Petronella (Taylor-Joy), uma jovem de origens humildes que, por vontade da sua família, aceitou um casamento arranjado para beneficiar de riqueza e status, é recebida por uma figura, Marin (Garai), que evoca a frieza e prontidão de Mrs. Danvers, a vilã de Rebecca. Com a diferença que Marin é a irmã de Johannes Brandt (Alex Hassell), o mercador de quem Petronella está noiva, e não uma governanta. O que na prática vai dar ao mesmo, já que esta se comporta como tal dando ordens a dois criados e gerindo tudo naquele microcosmo doméstico, desde os vestidos para a nova senhora ao que é permitido comer. "Não temos açúcar em casa. É um luxo que perverte a alma", diz, depois de Petronella pedir maçapão..YouTubeyoutubeQjirz044BTU.Este mal-estar inicial, que até certo ponto funciona como um verniz cliché, vai dar lugar a um jogo de nuances. Johannes, quase sempre ausente em trabalho e pouco interessado em intimidades com a bela esposa - apesar de nunca ser um marido detestável -, oferece-lhe como presente de casamento uma miniatura da própria casa, cujos compartimentos ela deve ornamentar a seu gosto encomendando peças a um miniaturista. Mas o que começa por ser o simples passatempo de compor um bibelô converte-se numa charada, desde a primeira encomenda: não só vêm mais objetos do que os solicitados, como cada um deles é uma réplica exata dos adereços da casa verdadeira, sem que o miniaturista tenha lá estado... O mistério adensa-se à medida que a realidade doméstica entra numa assustadora correspondência com a história que as miniaturas contam, através dos envios dessa personagem escondida que deixa mensagens como esta: "Cada mulher é a arquiteta do seu próprio destino.".Fica claro que há muitos segredos dentro daquelas paredes, e Petronella terá de descobri-los por si para encontrar o seu lugar e perceber a dinâmica de uma sociedade amarga, em plena Idade de Ouro Holandesa. Com reviravoltas no final de cada episódio, O Miniaturista refina as revelações ao mesmo tempo que tece uma visão sobre as virtudes do lar, tal como eram entendidas pelos puritanos que na altura dominavam Amesterdão. Foi, aliás, esta visão da autora Jessie Burton que os críticos do romance apontaram como "demasiado moderna", por contemplar inquietações contemporâneas (que não revelaremos aqui por razões óbvias)..Mas falemos do que se oferece aos olhos. O Miniaturista é o tipo de série que deslumbra pelo cuidado de cada composição visual, como se o realizador Guillem Morales procurasse filmar o interior da casa a partir da sugestão da miniatura no centro da história. E depois há a evidente homenagem a Vermeer, o pintor holandês que, por excelência, retratou cenas da vida burguesa, trazendo para a tela a intimidade do espaço doméstico em primorosas representações de luz e sombra, com particular destaque para as mulheres, geralmente retratadas perto da janela - como a protagonista que vemos sentar-se a escrever cartas numa postura muito vermeeriana. Já para não dizer que por vezes dá a sensação que Anya-Taylor Joy se volta para a câmara como a Rapariga com o Brinco de Pérola....Aos 25 anos, esta atriz que, desde A Bruxa, vem a somar interpretações notáveis em universos mais ou menos sombrios, prepara-se para voltar ao grande ecrã no novo thriller psicológico de Edgar Wright, A Noite Passada em Soho (estreia prevista para outubro), sobre uma jovem que consegue entrar na Londres dos anos 1960 para ir ao encontro do seu ídolo: uma aspirante a cantora interpretada por Taylor-Joy. Por agora, a cidade a espreitar pela janela é Amesterdão no século XVII, onde pulsões se misturam com açúcar, segredos, burgomestres, e até a ternura dos animais de estimação, perfeitamente enquadrados com uma suave heroína. Como disse a atriz numa entrevista ao Indiewire: "O que é fascinante sobre aquela casa é que quase parece que a sociedade fica excluída dela. Assim que a porta se fecha, eles estarão a viver de acordo com as suas próprias regras." Certo. Mas os calvinistas não perdoam..dnot@dn.pt