António Monteiro: "Neste confronto, precisamos de mais parceiros: China, Índia, Brasil"

Para o antigo embaixador, que representou Portugal nas Nações Unidas e presidiu o Conselho de Segurança da ONU, "esta é uma guerra de um homem só" e "não podemos excluir uma guerra nuclear". Ainda assim, acredita que "a via negocial pode alcançar uma paz digna".
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Foi ministro dos Negócios Estrangeiros no breve governo de Santana Lopes, representou Portugal junto das Nações Unidas, presidiu o Conselho de Segurança da ONU. Antes disso, liderou do lado português nas negociações de paz para Angola. Foi por duas vezes embaixador de Portugal em França, presidiu o Conselho Geral e de Supervisão do banco Millennium BCP e hoje preside o conselho de administração da Fundação Millennium BCP.

Como se trava Vladimir Putin?


De momento, está imparável. Tem objetivos definidos, maus, mas são os dele. E, por isso, creio que é muito difícil pará-lo, a menos que o processo negocial dê alguma abertura e seja possível atender a algumas das exigências ou pretensões que possa ter. Mas permita-me dizer que sempre achei - e é a parte mais injustificável desta guerra -, que nada do que Putin possa pretender das negociações com a Ucrânia não obteria utilizando a via negocial. A guerra é uma guerra inútil e de alguém que não respeita os mínimos do que é a ordem internacional. Putin põe em causa a ordem internacional de forma deliberada. As pessoas têm tendência a dizer que ele é doido - mas se fosse doido era inimputável -, não, ele é imputável, faz deliberadamente e manipula.

Ninguém acreditava na guerra. Putin enganou o Ocidente?
Não creio que tenha enganado o Ocidente, mas durante muito tempo demos-lhe o benefício da dúvida. Não pensava para mim, até como diplomata, que um membro do Conselho de Segurança - como a Rússia é -, com direito de veto, viesse a ser ele a ameaçar com a utilização de armas nucleares e com um conflito que pode ser a destruição da humanidade.

No entanto, os exemplos foram-se sucedendo: a Chechénia, a Geórgia, a Ucrânia...
É verdade. Fomos sempre pensando que havia uma margem para acomodar em paz aquilo que era uma zona de conflito e uma zona a que a Rússia teria, eventualmente, algum direito ou uma esfera de influência. Penso que, nesse sentido, Putin nos enganou, mas talvez também nos tenhamos enganado a nós próprios.

Biden disse que nunca subestimou Putin, mas disse também que este pretende restabelecer a antiga URSS. Será assim? Concorda?

Dizer que nunca subestimou, não sei, acho que todos subestimámos. Devo dizer que não é uma crítica ao presidente Biden, que acho que tem tido uma ação notável, porque é difícil conciliar determinação e liderança, por um lado, e contenção, por outro. Esta contenção é necessária para evitar o pior, portanto, Biden tem agido bem. Mas creio que Biden nem sempre terá avaliado o perigo que Putin e o seu regime representam.

E pretende restabelecer a antiga URSS?


Creio que nem isso. Devido à minha idade, atravessei várias décadas de terror e de dicotomia entre o bem que estava do lado ocidental e o mal que estava do lado soviético. Mas nunca vi um ditador assim - e eram ditadores, Lenine, Estaline, todos os que se seguiram, mas todos eles tinham, pelo menos, alguma contenção e algum filtro provocado pela estrutura do partido em que se apoiavam e que tinha voz ativa, muitas vezes até correndo com eles quando entendiam que assim deveria ser. Este homem não tem nada, não tem partido, vejo-o completamente isolado.

É uma guerra de um homem só?
Acho que é uma guerra de um homem só, claro, mas que depois impõe a sua vontade e encontra uma série de vozes que repercutem aquilo que ele pretende dizer, o que lamento. O que acontece foi o que aconteceu na Alemanha com Hitler, a comparação vem sempre à tona, mas é inevitável. E, ainda assim, Hitler ainda tinha o Partido Nazi, mas aqui não me parece haver. E não se vê ainda um levantamento ou uma tentativa de alguém travar a ambição de Putin.

Putin será um Hitler sem partido?
Acho que é isso, ele não segue as regras soviéticas, ele prescinde de tudo isso e navega por si próprio num mundo sem regras, onde a regra é a força. E isso é algo que não podemos admitir.

Pensa que foi de alguma forma precipitado o anúncio americano de cortar a importação de petróleo e gás russos? Precipitado no sentido em que Putin ainda não invadiu Kiev à hora em que falamos.
Penso que o trunfo principal que temos tido até agora e que temos nesta luta pela Ucrânia, são os próprios ucranianos. A resistência ucraniana está a transformar o que poderia ser uma catástrofe rápida, e com um fim que também poderia ser bastante rápido, uma espécie de blitzkrieg que tivesse permitido a ocupação de toda a Ucrânia. A resistência e o facto de Kiev não ter caído deve-se aos ucranianos, e aqui quero expressar a minha admiração, não apenas pela resistência do povo, mas também pela capacidade dos seus líderes, começando pelo seu presidente que é uma surpresa notável, embora perceba a aflição em que ele vive. A utilização dos trunfos não acho que tenha sido precipitada, pelo contrário, penso que foi ajustada e, pela primeira vez, era necessário dar a Putin a ideia de uma resposta muito rápida e que aquilo que nós dizíamos ia ser feito. A ideia de que não iríamos entrar em manobras dilatórias e aceitá-las, a ideia de que há uma coesão e unanimidade entre Estados Unidos e Europa, de forma a rapidamente impor medidas concretas. E devo dizer que isso é um efeito de reforço da NATO, que muita gente dizia que não tinha utilidade, mas que tem utilidade e sempre achei que a tinha.

A NATO voltou a ser central?


E o assunto principal não é a guerra, porque a NATO é uma aliança defensiva, mas é uma aliança defensiva que se impõe e se impôs como força dissuasora de veleidades militaristas. Portanto, aqui provou a sua utilidade e, finalmente, ressuscitou e é uma espécie de garantia que temos ainda contra o pior. Mas também a União Europeia - que nunca vi ter decisões tão rápidas -, de facto, a integração europeia deu um passo enorme com o que se está a passar.

A guerra uniu os europeus?
Foi exatamente a ameaça Putin que uniu a Europa. Deixámos de ter aquelas decisões que têm de ser tomadas depois de grandes consultas burocráticas e discussões? Não, as decisões aqui eram políticas, não eram burocráticas, e foram políticas e foram tomadas. E essas decisões passavam por ferir a Rússia naquilo que mais lhe toca, neste caso, a guerra financeira, não apenas as receitas de que Putin beneficia, mas também a vida regalada em que estava toda a elite que à volta de Putin alimentava uma Rússia antidemocrática e com veleidades desta ordem de imposição de até, eventualmente, uma nova ordem mundial.

As sanções não têm parado Putin. Quais são os próximos passos?

Penso que esse é ponto que mais me angustia porque não vejo bem que saídas possamos ter. Ainda queria pensar que a via negocial poderá abrir algumas luzes e algum espaço para, pelo menos, se chegar a uma paz digna. Devemos não estar apenas num confronto entre Rússia e Ocidente, mas arranjar mais parceiros - e sei que é difícil -, mas deveríamos estar em permanente contacto - como, aliás, os americanos têm feito -, até com países que não estão aliados connosco, mas aos quais podemos puxar para nos ajudar a impor racionalidade no campo russo.

Como por exemplo?
Por exemplo a China, a Índia, países como o Brasil.

Os países que estão a ter um papel diplomático mais ativo são, além da Turquia e de Israel, também a República Popular da China.
Mas, além da mediação que têm oferecido, creio que mais do que a mediação era necessário que estes países ajudassem a dar a Putin a noção do seu total isolamento.

E estarão dispostos a isso, a passar para o lado do Ocidente?
Não é passar para o lado do Ocidente, mas sim perceber que há uma ordem que pode interessar ainda mais à China do que a subversão total da ordem. A China tem, pelo menos em relação à Rússia, um aspeto positivo, não é uma potência agressiva, portanto, é trazê-los para o nosso lado, tal como deveríamos fazer com a Índia. A Carta das Nações Unidas, pelo que nos lembramos, começa por dizer, "Nós os povos das Nações Unidas, determinados a salvar as gerações futuras do flagelo da guerra", é assim que começa a Carta das Nações Unidas. E a China tem valorizado esse papel, até a sua pertença porque, como sabe, durante algum tempo a China esteve representada no Conselho de Segurança por Taiwan e foi, depois, uma mudança em 1973 que levou o governo de Pequim a ser reconhecido como o legítimo representante da China. Portanto, a China sabe que esta ordem lhe tem sido favorável e até lhe tem dado credibilidade para ser internacional. Na minha opinião, a China vê sempre na Rússia uma ameaça e uma ocupação da Sibéria e da Ásia. E permita-me citar um amigo, que é um conhecido professor universitário e político, que dizia que "para a China, o ideal era que a Rússia fosse para ela o que a Bielorrússia é para a Rússia". Portanto, o ideal seria que a Rússia se transformasse numa espécie de país do protetorado.

Com a Rússia economicamente depauperada e com a reconstrução da Ucrânia para fazer é inevitável termos a China a entrar ali com toda a força, seja na assistência financeira à Rússia e na dívida que isso vai criar seja na presença massiva de empresas chinesas na reconstrução da Ucrânia?
Penso que a China poderá ganhar até muito mais de ainda haver uma área em que possa favorecer os seus interesses económicos, disso não duvido. Mas, certamente, ganhará mais em fazê-lo pela via pacífica e não com o perigo de um build up militar que pode redundar numa guerra nuclear. Não podemos excluir a hipótese de uma guerra nuclear, aliás, é Putin que não a exclui. Por isso, penso que, se em vez de termos confronto entre Rússia e Ocidente, tivermos um confronto entre Rússia e o resto do mundo - aquele mundo que pensa por si -, que é independente, claro que não estou a pedir que a Síria nos venha apoiar, porque faz parte dos países que estão sob tutela, mas aqueles que pensam por si próprios e que acreditam que o primeiro bem da humanidade é salvaguardar a nossa existência, não há outro.

Biden afirmou que não vai entrar no conflito, mas defender os países da NATO com toda a força. Será suficiente esta postura face ao horror a que estamos a assistir?

Creio que para ainda mantermos aberta a instalação da paz é preciso continuar a seguir esta via porque enquanto não houver um centímetro quadrado de território da NATO violado, não há um conflito bélico entre a Rússia e os países da NATO. É evidente que conciliar isto com a ajuda eficaz à Ucrânia passa por esforços de nos empenharmos em todos os meios para que isso aconteça. Desde o fornecimento de armamento à ajuda financeira e estarmos preparados para o pior, no caso de, e quando, a Rússia ocupar toda a Ucrânia, nomeadamente Kiev. Porque aí também temos uma incógnita enorme: Putin ocupa a Ucrânia e Kiev para quê? Alguém pensa que ele vai poder dominar um país como a Ucrânia? É impensável. Que solução é que Putin poderá aplicar? Colocar um governo fantoche que nunca será reconhecido por ninguém? Haverá sempre um governo no exílio e haverá sempre um conflito latente. Partir a Ucrânia e transformar a Ucrânia numa Coreia com um oeste e um leste? Também não funcionará, porque aí teria certamente a NATO à porta. Porque uma Ucrânia partida e uma Ucrânia ocidental seria sempre parte da União Europeia, toda seria, mas essa com mais razão de ser. Portanto, quais são passos no caso de ocupação militar de Putin, à custa da derrota dos ucranianos e da própria Rússia, porque terá de viver muitos anos a pagar isto, teremos sempre um conflito latente e permanente aqui que não se resolve. E, por isso, quero pensar que mais vale continuarmos a tentar negociar e chegar a um acordo, que não pode ser um acordo indigno depois de todo o sacrifício feito pelos ucranianos. Não podemos ceder às exigências russas que, no fundo, são um delinear de um mapa possível de cedências que poderia conduzir à paz.

Falando em tensão latente, poderá a China aproveitar o momento de invasão para a tentar em Taiwan?
Não creio, de todo, acho que é completamente excluído e não acho que seja essa a pretensão da China. É completamente diferente, o que está em causa relativamente a Taiwan é a questão da democracia, das liberdades, do sistema que é diferente, mas aí é algo que a China tem - a famosa diplomacia da paciência e, portanto, não tem necessidade nenhuma de entrar nisso nem tem comparação com o que se passa na Ucrânia. O que acontece na Ucrânia é que uma potência, ainda por cima membro do Conselho de Segurança, invade e tenta ocupar uma nação independente que ele próprio reconheceu.

Ficou surpreendido com a prestação de Zelensky?

Sim, em parte sim. Não tínhamos noção da dimensão do homem, mas esteve à altura das circunstâncias e, mais do que isso, ao mesmo tempo que faz os apelos até algo desesperados, tem mostrado uma razoabilidade notável. Foi uma surpresa para todos.

Era mesmo impossível a zona de exclusão aérea? Isto é, a Rússia e a NATO entendem que colocar uma zona de exclusão aérea era estar em contacto direto com a Rússia.
Era guerra.

Era guerra mesmo ou poderia funcionar como efeito dissuasor?
Era guerra, foi como começou a guerra do Iraque. Logo que se começam a decretar zonas de exclusão aérea, isso leva a que coloquemos as cartas no campo bélico e, por enquanto, não pode ser. É como a generosa oferta da Polónia dos MIG, também não pode ser, porque, por enquanto, a NATO está a atuar como aquilo que é, uma aliança defensiva que defende os seus membros e o seu território e que, ao mesmo tempo, está a auxiliar abertamente um país irmão. E, aí, a Rússia e Moscovo terão de perceber que, cada vez mais, essa ajuda será significativa, mas sem haver um confronto direto entre um e outro, porque isso é impensável. Conseguimos, durante 60 anos, evitar isso pelo equilíbrio do terror e agora é, não digo impensável porque as coisas podem acontecer, mas seria para todos nós uma derrota deixar que este homem nos destruísse.

Seria uma derrota para a Europa e para o mundo?
Seria uma derrota para o mundo, não somos só nós que estamos em causa.

Putin quer pôr em causa a ordem mundial, como disse Von der Leyen?


Acho que já a pôs e a ordem mundial que aí vem já não será a mesma. As Nações Unidas já tinham algumas dificuldades e problemas e limitações que são conhecidos, mas era a estrutura de garante de paz internacional. Mas como é que agora pode ser garante da paz e estabilidade internacional, quando um dos países guardiões, ou seja, com direito de veto e que era suposto serem um dos guardas do templo, e eles é que vêm destruir e dão cabo da própria carta e dos princípios em que eles participaram depois da Segunda Guerra Mundial? Creio que teremos de enfrentar outra coisa, no final deste conflito como é que podemos encontrar equilíbrios na cena internacional - que será completamente diferente -, onde certamente beneficiarão países como os Estados Unidos, a China e a Índia, e, eventualmente, a UE passar também a ser um parceiro mais credível como hard power e não só soft power, graças a esta decisão de termos uma defesa europeia com forças militares. E, já neste âmbito, temos grandes transformações, como o facto de a Alemanha ter entrado, países como a Finlândia e a Suécia que estão preparados, mas não estavam. Portanto, já está alterada a ordem mundial e já temos novos equilíbrios de poder que determinarão uma nova regulação da ordem internacional.

Como avalia a atuação do governo português neste conflito?

Bem. Acho que a atuação está muito integrada na Europa, e bem, o que é uma tradição da diplomacia portuguesa, porque independentemente da cor política dos governos, sempre teve como pilar a NATO e a União Europeia. É uma avaliação positiva, não apenas para nós, mas é positivo para toda a Europa e para a NATO. Veja-se, por exemplo, a recuperação de um personagem que era extremamente discutível e com o qual também temos de ter cuidado, que é Erdogan, mas é preciso chamá-lo. A Turquia é NATO, é preciso dar-lhes um papel, tal como acho que seria conveniente dar a outros, de maneira a garantirmos unidade ou a tal frente mundial, que poderia mostrar a Putin todo o seu isolamento e, eventualmente, inspirar o que ainda possa haver de influência de quem está de volta dele.

Voltando a falar de Portugal, apesar de Lisboa e Kiev estarem a uma distância de 4 mil quilómetros, as consequências económicas já chegaram no que toca à fatura do combustível e vão chegar, certamente, novos efeitos. O que é que antevê de impacto económico para Portugal, que outros riscos corremos?
É difícil ver a repercussão, mas a primeira é aquela que já estamos a ver, que é o aumento do preço dos combustíveis que afetam todos nós, mas sobretudo o Portugal que trabalha com base em fontes de energia. Portanto, aí temos de estar preparados e creio que é um preço que vamos todos pagar, mas isso está desde o início anunciado. Aliás, o próprio Biden tem tido até alguma delicadeza quando procura com Maduro e até eventualmente com o Irão, com a Arábia Saudita, com a Argélia e com outros países, encontrar fornecedores de energia que possam minorar os efeitos que isto vai ter na Europa. Isto demonstra a preocupação que existe com as certezas de que há um preço que vamos ter de pagar e que este apoio não é apenas um apoio à distância, porque vamos também sentir na pele as consequências desta situação. Acho que aí vamos ter problemas e vamos também ter de, eventualmente, acolher todos os refugiados que queiram vir. Creio que aí também estamos a atuar bem: na abertura, na tomada de decisões e na maneira como o povo se mobilizou. Ainda ontem estive com a embaixadora da Ucrânia, também notável, até na forma como fala português em tão pouco tempo, e ela é uma esperança para todos os ucranianos que venham porque têm ali um bom exemplo de como rapidamente aprendem a falar português. Ela expressou o quão grata está por todo o apoio que tem vindo de todas as partes, não só do governo, mas também da sociedade civil. Mas tudo isto também vai significar que teremos de partilhar alguma coisa, temos de encarar isso porque estamos em tempos de guerra. É uma guerra na Europa, a Ucrânia é Europa e eles querem ser Europa e nós também queremos que eles sejam Europa. Agora, teremos de estar preparados para que haja descontentamento e o governo terá de tomar medidas. Já foi bom ter baixado as taxas porque, de facto, temos de ver que há muita gente que vive com base no gasóleo e na gasolina e que, sem isso, entra em grandes dificuldades.

Vamos olhar o petróleo em alta, mas noutra perspetiva, na perspetiva de Angola. Pode ser um sinal de esperança e crescimento para a economia angolana com a qual Portugal tem relações tão próximas?
Espero que sim e creio que sim. É uma benesse que certamente os angolanos não desejariam, mas a subida do preço do petróleo e do gás favorece e facilitará um pouco o aliviar do estrangulamento que havia na economia angolana, que agora tem como respirar. Vêm aí mais fundos que podem ser utilizados, e bem, e creio que em ano de eleições, como está agora, tanto o governo como a oposição terão interesse em que haja uma melhor utilização destes meios para aliviar aquilo que tem sido um peso muito forte na economia angolana e que tem provocado uma deterioração das condições de vida. Penso que aí será bom, e espero e desejo que os angolanos aproveitem bem esta oportunidade.

Precisamente porque estamos em ano de eleições, parece-lhe que João Lourenço está para durar?
Não gosto de fazer prognósticos, acho que quem tem de decidir isso são os angolanos, mas é evidente que penso, em relação a Angola, que para um país a despeito de todos os problemas e dificuldades, a paz é um bem e foi um bem. Depois de 28 anos de guerra civil, os angolanos sabem bem na pele o que custa a opção militar e quanto vale um país em paz, assim como o valor da democracia, da abertura e da transparência, que muitas vezes demora a chegar porque não se faz num dia. Mas são valores absolutamente essenciais para que o bem-estar das pessoas seja real e não apenas uma questão fictícia.

Qual é o segredo para uma bem-sucedida negociação de paz?
Primeiro, criar uma base de confiança, se pensarmos que estamos a negociar com uma frente falsa em que não há uma intenção real de se chegar ao objetivo que se quer, que é a paz, se há essa desconfiança, dificilmente se chega a um acordo. E depois, claro, sempre que há negociações há cedências, há avanços e recuos, mas é sempre preciso que da negociação se entenda que há boa-fé de ambas as partes. Não havendo isso, a negociação está minada e não tem pernas para andar. Esta é a minha experiência, e isto não é apenas em Angola, mas também no Sudão do Sul, por exemplo, em que fiz parte do painel e tantas vezes discuti isso e, de facto, o que aconteceu no Sudão do Sul foi um exemplo de que me tenho lembrado muitas vezes. Foi possível a paz porque o Sudão reconheceu e aceitou ficar amputado do Sudão do Sul e, depois, a situação degenera porque no Sul não se tinha precavido a manutenção da sua unidade e a manutenção de exércitos privados de diferentes estados e, por isso, degenera no Sul e no Norte. Ao fim destes anos temos gente no Sudão a clamar por democracia, e no Sudão do Sul gente a clamar por paz, porque ainda há divisões que são necessárias ultrapassar. Portanto, em negociações é sempre preciso, além da boa-fé, que é essencial, e de se perceber que ambas as partes estão empenhadas em encontrar um resultado, ao mesmo tempo, termos consciência de que a paz não termina no acordo, é preciso implementá-la e acompanhá-la. A paz é como um bebé que vai crescendo até chegar à idade adulta e poder viver por si próprio, temos de o acompanhar e dar alguma margem, não estarmos sempre em cima, porque não há paz perfeita, há paz possível.

Nos processos de paz fala-se sempre da reconciliação e do que se segue e isso está, muitas vezes, associado a mecanismos de justiça. Há também a questão da justiça internacional. Consegue ver no horizonte Vladimir Putin a ser julgado por crimes de guerra e crimes contra a humanidade?
Que ele o merece não tenho dúvida nenhuma e, por mim, já estaria a ser julgado. Mas agora temos de ver o que reserva o futuro e o que está nas negociações, porque às vezes acontece que razões de justiça e até de respeito que temos pelas regras e pelo direito no mundo democrático levam a outras situações. Também tive outra situação que vivi. Estive na Costa do Marfim como representante do Conselho de Segurança para levar a Costa do Marfim a eleições, e finalmente houve eleições, criou-se uma comissão independente, mas tudo aquilo com uma oposição muito forte entre o presidente Gbagbo e os rebeldes, na altura comandados politicamente por Guillaume Soro. Mas quando tivemos paz e se fizeram as eleições, houve uma não aceitação dos resultados das eleições por parte de Gbagbo e isso desencadeou uma guerra e, aí, ele, a sua mulher e apoiantes foram todos para Haia e depois foram absolvidos, apesar de todos os crimes que fizeram. Incluindo um jovem do qual não me recordo o nome, mas que era do regime, e era um tipo execrável e um facínora. E tudo isto porque passados anos não respeitamos as regras, temos direitos, mas muitas vezes a justiça fica em suspenso.

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