António Marujo: "Os cristãos só podem unir-se na defesa da paz e na recusa de qualquer nacionalismo"
Nestes tempos de guerra na Europa, os apelos de Francisco à construção de uma humanidade que viva em paz perdem força ou dá-se precisamente o contrário?
Bem pelo contrário. Este crime que Putin iniciou torna ainda mais prementes os apelos do Papa. Vivemos num mundo em que a urgência dos problemas - ambiente, pobreza extrema, refugiados, comércio de armas e outros - revela a premência de expandir a democracia: apesar das suas limitações, só ela permite afrontar os graves problemas que colocam em causa o próprio futuro da humanidade. Isto é mais verdade quanto a guerra sempre foi, e é cada vez mais, um absurdo: não resolve problema nenhum, agrava os que já existem e deixa um sofrimento imenso por décadas. Os povos e os seus governantes têm de se habituar a resolver conflitos pelo diálogo, e não pela força das armas - onde ganha sempre quem tem mais armas. A recusa da guerra é um sinal de humanidade, e é essa lógica que o Papa tem afirmado.
A paz é um valor absoluto ou por vezes a guerra é uma escolha que os povos têm de fazer?
A guerra é cada vez mais uma forma insana de resolver os problemas, como temos visto pela tragédia que se abateu sobre os ucranianos - e já antes sobre os sírios, iemenitas, palestinianos, congoleses, moçambicanos e tantos mais. Quando sabemos (e Putin ameaça) que o planeta pode ser destruído milhares de vezes, isso diz tudo acerca do absurdo que é querer resolver problemas pela força das armas. A guerra só é uma opção porque continua a haver fabricantes de armas, que saem sempre a ganhar. Mas a única escolha humana é recusar a guerra. Para ganhar a independência da Índia contra o maior império da época, Gandhi usou uma estratégia de resistência não-violenta. Luther King e Mandela seguiram-lhe o exemplo e a estratégia. E desde há muito me interrogo porque é que, por exemplo, os palestinianos não usam a mesma lógica. Provavelmente já teriam hoje resultados mais concretos. E pergunto-me o mesmo sobre a Ucrânia...
A Igreja, ou as igrejas, devem unir-se na defesa da paz ou as sensibilidades nacionais acabam por impor-se?
Há importantes grupos das Igrejas Ortodoxa Russa e Ortodoxa e Greco-Católica da Ucrânia que têm recusado a lógica da guerra. Lamentavelmente, uma parte delas tem alimentado essa argumentação. Na videoconferência com o patriarca Cirilo, da Igreja Ortodoxa Russa, o Papa insistiu na ideia de que o cristianismo já não pode falar hoje de guerra santa ou de guerra justa. Isso quer dizer que as igrejas cristãs têm de ser cada vez mais fiéis à sua matriz evangélica, também nesta matéria. É estranho ver Cirilo preocupado com o que considera a "decadência moral" do Ocidente, de que a Ucrânia seria o reflexo, e não levantar a voz contra a insanidade de bombardear pessoas indefesas em teatros, hospitais, estações de comboios ou que simplesmente circulam na rua... Também é estranho, mesmo se menos grave e mais compreensível, que haja padres ucranianos a falar dos russos como inimigos (ou ucranianos presos por não quererem combater). A resposta é: sim, os cristãos só podem unir-se na defesa da paz e na recusa de qualquer nacionalismo; a matriz do cristianismo é o universalismo.
Acha que as Nações Unidas, por muitas fragilidades que mostrem, continuam a ser o melhor instrumentos da comunidade internacional para procurar o entendimento entre os povos?
Sem dúvida, apesar da ideia repetida por tantos comentadores de que as Nações Unidas não fazem nada, esquecendo que a ONU é o que os governantes querem que ela seja. E hoje ela está bloqueada pelo direito de veto dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança e porque quem tem armas e poder são alguns dos seus Estados-membros. Entre os primeiros passos para o reforço do papel da ONU deveriam estar o fim do direito de veto, a maior democracia interna e a progressiva desmilitarização dos países, começando pelo armamento nuclear, e dotando a ONU de uma força de dissuasão e de defesa que intervenha perante violações do direito internacional. O reforço das Nações Unidas é o caminho certo para a pacificação do mundo.
É de temer uma sucessão de guerras quando os recursos do planeta começarem a escassear ou ainda vamos a tempo de combater o aquecimento global e o seu impacto na agricultura, nos mares, na vida quotidiana?
O discurso sobre o crescimento económico é mentiroso e perverso: os recursos são finitos, não podemos estar sempre todos a crescer. Como os mais ricos querem crescer sempre à custa dos pobres, as guerras acontecem. Por isso temos de debater também uma repartição mais justa dos recursos pelos povos do mundo. A China tem uma ditadura duríssima; a Índia tem um governo nacionalista que exclui e persegue cada vez mais quem não é hindu; Turquia, Irão ou Arábia Saudita têm governos autoritários, que mantêm e alimentam guerras em vários cenários. Mas no Ocidente pagamos a todos eles (e a outros ditadores ou corruptos) a energia, a tecnologia, a mão de obra barata. E pagamos o gás à Rússia, ajudando assim a pagar as bombas que matam na Ucrânia. As guerras já existem por causa da escassez de recursos, e só mais coerência do Ocidente em prol da democracia, da justiça e dos direitos humanos pode ser eficaz para termos futuro como humanidade. Espero que possamos ir ainda a tempo e que cada vez mais políticos e populações não precisem de novas tragédias para abrirem as nossas cabeças.
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