Este desfecho de 2021, com o chumbo do Orçamento e a dissolução da Assembleia da República [AR], vai dar a Marcelo Rebelo de Sousa uma maior centralidade na vida política no próximo ano? No caso de Marcelo Rebelo de Sousa há vários fatores que contribuem para a sua centralidade: tivemos um governo minoritário e, a partir de 2019, sem acordos que estabilizassem minimamente a aprovação dos orçamentos; depois, um "estilo político" de grande ativismo presidencial, desde o início do primeiro mandato. A prova da centralidade do Presidente da República foi a decisão de convocar eleições antecipadas: maior centralidade é difícil no atual contexto do semipresidencialismo português. Partindo do princípio de que não existem maiorias absolutas de um só partido, o Presidente estará mais no centro da vida política. A maioria absoluta seria o único cenário em que essa centralidade diminuiria..Não antevê esse cenário de maioria absoluta de um só partido? Não. A tendência na democracia portuguesa nos últimos anos é que não exista uma maioria absoluta de um só partido. Mas os cenários são diversificados. Se existir um governo de coligação com maioria parlamentar à direita, o papel do Presidente, formalmente, diminui. Se existir um governo minoritário, o Presidente tentará exercer politicamente a sua influência e capacidade negocial para que exista um governo com apoio maioritário, estável, no parlamento..Marcelo pressionará para que haja uma solução maioritária? Sim. Tem sido sempre essa a atitude dos presidentes e, no caso de Marcelo Rebelo de Sousa, isso remete para a coerência do seu discurso e da sua prática, que tem sido a de assegurar o mais possível a estabilidade, independentemente da natureza dos governos. Tem sido notória a sua pressão, pública e privada, para assegurar a estabilidade governamental. A ameaça, concretizada, de dissolução foi, aliás, um exemplo disso..Nesse contexto poderá desenhar-se uma solução de Bloco Central? Na perspetiva do Presidente a estabilidade governamental é a prioridade e essa será, seguramente, a estratégia presidencial. Mas pode não coincidir com os interesses dos partidos. A solução de um Bloco Central só existiu numa conjuntura muito excecional, de crise grave, como foi o caso da intervenção do FMI. Coisa diferente é o PSD viabilizar os orçamentos de um governo minoritário do PS ou vice-versa. É, aliás, curioso que a abstenção no orçamento seja considerada apoio. O PS absteve-se no primeiro orçamento de Passos Coelho. Alguém considerou isso um apoio?.Rui Rio já admitiu esse cenário... Já. Mas isso é uma iniciativa dos partidos e convém sublinhar que os partidos são atores autónomos e poderosos na relação com o Presidente da República. A prova disso foi o que aconteceu [o chumbo do OE]. Se isso acontecer, remeterá para uma estratégia negocial entre PS e PSD. Mas um bloco central parece-me muito duvidoso. No atual contexto, sem uma crise grave, já com uma representação partidária fragmentada à direita, seria arriscado para o PSD e o para o PS..No discurso em que formalizou a dissolução da AR, Marcelo evocou a sua experiência enquanto líder da oposição e referiu o facto de ter viabilizado orçamentos de António Guterres. Isso pode ser lido como um indicador para o futuro? Pode ser lido como um indicador, como já o foi em tempos bem mais excecionais: lembremo-nos das "abstenções violentas" do PS na fase inicial da troika. Mas a conjuntura é diferente e os atores políticos não são insensíveis à conjuntura. Portugal não vive uma situação de condicionamento em que as instâncias internacionais forcem a existência de um governo maioritário, nem uma conjuntura em que o impacto da natureza dos governos seja muito significativo na performance económica do país. Tendo em vista as duas dimensões, não é provável que os partidos realizem alianças contra os seus interesses..O Presidente já disse que não exigirá acordos escritos. Mas o cenário de uma vitória por pouco de um partido não pode exigir um compromisso deste género? Depende muito do tipo de maioria. O PSD tenderá a fazer coligações pós-eleitorais à direita caso seja o partido mais votado, mesmo que essas coligações não deem origem a um governo maioritário. Evidentemente, isso depende muito do CDS e, sobretudo, da Iniciativa Liberal. A inexistência de uma aliança pré-eleitoral com o CDS parece-me curiosa, na perspetiva do próprio interesse do PSD. Caso seja o PS, este vai tentar, mais uma vez, encontrar acordos à sua esquerda..Depois do que aconteceu há espaço para a esquerda se entender? O espaço não é grande. O chumbo do orçamento, sem sequer o deixar chegar à especialidade, significou que após seis anos de convergência à esquerda, esta não avançou muito. Mas será quase seguramente esta a estratégia do PS, caso ganhe..O posicionamento de Marcelo quanto a essas soluções poderá ser variável? Sim. O Presidente analisa, estrategicamente, o que melhor favorece as condições de estabilidade. Pode passar por acordos escritos ou não escritos, aprovações do orçamento caso a caso. Mas tudo depende muito da natureza dos resultados eleitorais, da maioria relativa de cada partido e sobretudo de quem tem mais deputados no parlamento, a esquerda ou a direita. E estas eleições são particularmente incertas..Ainda sobre os acordos escritos: Marcelo já deixou aberta uma exceção e disse que pediria acordos escritos no cenário de o Chega ir para o governo. É um statement do Presidente sobre esta solução? Claro que é. Sendo o Chega um partido novo, de protesto, populista de direita radical, pode ser por si só um fator de grande instabilidade..Existe algum risco para o Presidente nesta dissolução e nas decisões que tomará no pós-eleições? A grande maioria da sociedade reconheceu que a dissolução era a única alternativa. Pelos estudos que temos, a rejeição do Orçamento pelos dois partidos à esquerda do PS não foi popular na maioria do eleitorado de esquerda, que gostava desta solução governamental. É muito pouco provável que o Presidente venha a ser penalizado..Mas este pode ser um momento decisivo para a imagem que ficará dos mandatos de Marcelo? Não. Marcelo tem duas vantagens perante alguns presidentes do passado: a primeira é que não foi primeiro-ministro. Deste ponto de vista, aproxima-se mais de Jorge Sampaio que de Soares e Cavaco, que polarizaram muito a sociedade. Mas claro que a intervenção de um Presidente, sobretudo em conjunturas de crise política, torna-o um ator político bem mais central. Evidentemente que ficaria associado a um panorama de instabilidade na formação dos governos, se acontecesse, mas isso remete sobretudo para a dinâmica das atitudes eleitorais e para o parlamento..susete.francisco@dn.pt