António Costa, a Carochinha e o João Ratão

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A metáfora inspirada no conto popular a que o primeiro-ministro recorreu, esta semana, para demonstrar que não está preocupado com a aprovação do Orçamento do Estado para 2020 é paradigmática do novo tempo político que estamos a viver, por comparação com aquele que vivemos na anterior legislatura.

Primeiro porque, ao contrário do que seria expectável, António Costa não se vê na pele de Carochinha, tão esbelta e bonitinha, à janela, clamando que alguém "case" com ele. Mas também não parece imaginar-se no papel de João Ratão, nem no de nenhum dos outros animais que passaram, entretanto, por aquela janela, à procura de casamento. O primeiro-ministro está aparentemente confortável no papel de "solteiro", ainda que sem maioria no Parlamento. Estado da relação? É complicado.

A 6 de outubro de 2019, os eleitores quiseram deixar duas mensagens muito claras ao Partido Socialista: a primeira foi que não lhe queriam confiar uma maioria absoluta. E a segunda, que decorre da primeira, que estavam satisfeitos com a solução política da geringonça e queriam a sua continuidade. Por injusto que isto possa ter parecido ao PS - e a António Costa, em particular -, esta é a realidade com que todos os partidos têm que lidar.

O problema é que as circunstâncias políticas são hoje muito diferentes das que existiam há quatro anos. A começar pelo Presidente da República, que já não se chama Cavaco Silva, mas Marcelo Rebelo de Sousa. Com todas as vantagens e desvantagens que isto tem.

Em segundo lugar, o centro direita está, praticamente, desaparecido em combate. No PSD já não existe o "bicho papão" chamado Pedro Passo Coelho, que, durante dois anos, serviu de cimento a uma geringonça que se agigantava só com a ideia de voltar a ter Passos no poder. O CDS foi praticamente remetido à irrelevância política e está agora sufocado pelo liberalismo de João Cotrim de Figueiredo e populismo bacoco e perigoso de André Ventura.

Mas são sobretudo as alterações do quadro político à esquerda - em parte influenciadas pelas do centro-direita - que alteram, mais profundamente, a gestão de António Costa. Apesar de ter conseguido evitar a maioria absoluta do PS e manter o número de deputados, o Bloco de Esquerda perdeu votos e não conseguiu, capitalizar eleitoralmente - tanto como gostaria, pelo menos - os ganhos de causa dos últimos quatro anos. Já o caso do PCP é muito mais grave. O partido, que já tinha sofrido uma pesada derrota nas últimas autárquicas, voltou a sofrer nas últimas legislativas mais um duro murro no estômago: perdeu votos, perdeu representação e, sobretudo, não viu reconhecido nas urnas o trabalho que fez na última legislatura. O PCP está a perder uma parte significativa da sua base eleitoral e precisa urgentemente de a reconquistar, sob pena de ser tarde demais.

Como se tudo isto não fosse motivo mais do que suficiente para alterar definitivamente a relação da geringonça - qual geringonça? -, o Bloco de Esquerda tem vindo a ser deliberadamente hostilizado pelo PS e por António Costa em particular. Enquanto, no PCP, não falta quem continue muito desconfortável por ter visto o seu partido suportar um governo socialista durante quatro anos. Ainda para mais, quando os resultados eleitorais parecem dar razão a quem pensa assim.

Consciente de tudo isto, António Costa parece ter feito uma escolha muito clara noite eleitoral: meter as fichas da legislatura - ou de parte dela, pelo menos - todas no PCP. Primeiro porque Costa, claramente, confia mais nos comunistas do que nos bloquistas. Depois porque, mesmo tendo menos deputados, as escolhas e decisões do PCP acabarão sempre por influenciar profundamente as do Bloco de Esquerda. E, por fim, porque ter o PCP como aliado ajuda - e de que maneira - a ter alguma paz social.

Seguindo a velha máxima de Jerónimo de Sousa, de que a palavra, para um comunista, vale mais do que mil acordos escritos, o PS, desta vez, abdicou do papel. As conversas com o PCP terão sido suficientemente esclarecedoras, mas, mais do que isso, parecem ter deixado o primeiro-ministro bastante tranquilo. A coreografia política das últimas semanas, que culminou no anúncio da abstenção dos comunistas, só vem provar isso mesmo.

Por isso, talvez o PS não ande, de facto, à procura de nenhuma Carochinha porque ele é, afinal, a Carochinha. E por mais candidatos que lhe passem à janela, o "João Ratão" já está lá, dentro de casa, junto à panela do Orçamento que o governo preparou cuidadosamente a pensar nos seus parceiros da esquerda. Mas, como lembrava o meu colega Manuel Acácio, no Fórum TSF desta semana, na história da Carochinha o João Ratão teve um triste fim. E, neste casamento do PS com a esquerda, já se provou que quem sofre no final não costuma ser a Carochinha.

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