Antonio Campos continua a filmar fantasmas e tragédias da América

O americano Antonio Campos continua a filmar as feridas internas do seu país: através do notável "Sempre o Diabo" (Netflix), propõe um fresco balizado pelo fim da Segunda Guerra Mundial e o reforço da presença militar dos EUA no Vietname, em meados dos anos 60.
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Assim vai a paisagem cinematográfica: por um lado, as plataformas de streaming proliferam, sendo agora as principais fontes de rendimento do audiovisual; por outro lado, de vez em quando, descobrimos que é nesse mundo virtual que está o grande cinema, precisamente aquele que necessitaria da grandeza do ecrã de uma sala escura para ser devidamente celebrado. Mas evitemos um banal discurso de queixa. Em termos simples: Sempre o Diabo, de Antonio Campos, produzido e lançado pela Netflix, é um dos grandes filmes do ano.

Podemos até supor (o que não significa o mesmo que profetizar...) que, daqui a algumas décadas, quando algum investigador se interrogar sobre o "estado de espírito" da América na era de Donald Trump, um filme como Sempre o Diabo será reconhecido como um objecto precioso e revelador.

Nada ver com um noticiário televisivo, entenda-se. Nem sequer com a abordagem do nosso presente. Estamos perante uma história com personagens enquistadas entre os traumas decorrentes de dois conflitos: a Segunda Guerra Mundial e a guerra do Vietname. O certo é que por aqui perpassam fantasmas, interrogações e várias formas de violência de uma nação a contas com as tragédias da sua identidade.

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No original The Devil All the Time, o filme baseia-se no romance homónimo de Donald Ray Pollock, publicado em 2011 (é ele, aliás, que empresta a voz à narração em off). Da narrativa em ziguezague temporal - abarcando um período que vai de meados da década de 40 até ao momento, cerca de vinte anos mais tarde, em que o presidente Lyndon Johnson decide reforçar a presença militar dos EUA no Vietname -, podemos dizer que se trata de um labirinto de gerações em que as heranças afectivas se baralham com uma cultura religiosa marcada por uma noção opressiva de culpa.

A saga do jovem Arvin Russell (Tom Holland) evolui como um processo de "purificação" da herança do pai, Willard (Bill Skarsgard), a certa altura cruzando-se com a personagem inquietante do reverendo Preston Teagardin (Robert Pattinson). Através de tais personagens, deparamos com a vulnerabilidade das figuras femininas, quase sempre encurraladas entre códigos tradicionais de submissão e muitas formas de manipulação sexual induzidas e "justificadas" por valores religiosos. Também por isso, o sector feminino do elenco é brilhante, incluindo Riley Keough (que vimos, por exemplo, em Sorte à Logan, de 2017, sob a direcção de Steven Soderbergh), Haley Bennett, Mia Wasikowska e a veterana Kristin Griffin (que se estreou em Intimidade, de 1978, um dos títulos mais perfeitos da filmografia de Woody Allen).

Tudo isto, importa sublinhá-lo, através de uma realização em que Antonio Campos (americano, de ascendência brasileira, nascido em 1983) confirma a sua fortíssima ligação com a mais nobre herança clássica de Hollywood. Dele já conhecíamos, por exemplo, os admiráveis Depois das Aulas (2008) e Christine (2016). Agora, mais do que nunca, compreendemos que Campos procura reencontrar o fulgor de uma tradição alicerçada na observação crítica e obsessiva dos espaços familiares, sempre marcados pelas tensões entre os destinos individuais e as convulsões colectivas.

Lembramo-nos, em particular, de Vincente Minnelli (1903-1986) e de títulos como Deus Sabe Quanto Amei (1958) ou A Herança da Carne (1960), expondo o misto de utopia e tragédia de uma América "interior", devorada pelo seu próprio tradicionalismo. Sem esquecer que, tal como Minnelli nesses filmes, Campos é um sofisticado utilizador do formato largo ("scope"), em particular na descoberta do anti-naturalismo, perturbante e surreal, que pode contaminar um qualquer cenário natural. Como se prova, a sua ambição não é pequena nem superficial.

* * * * * [Excepcional]

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