Antes tu que eu

Temos escolha mesmo com uma arma apontada à cabeça, disse Sartre. O mesmo que escreveu "nunca fomos tão livres como sob a ocupação nazi." Quando "antes morrer que" não é um lirismo, cada decisão implica a mais radical liberdade: a de arriscar tudo. Nesse sentido, a Ucrânia nunca foi tão livre. E nós?
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A cena fundamental de 1984, um livro de que muitos falam e talvez poucos tenham lido, é sobre a forma como se lida com o terror, e como o terror lida connosco - sobre o que, colocados na pior das situações, somos capazes, estamos dispostos a fazer. Sobre as únicas coisas que importam: coragem, lealdade, liberdade. Amor.

Winston, o protagonista, vive num mundo totalitário em que o amor é interdito. Quando a sua paixão por Julia é descoberta, é levado para o quarto 101 - o lugar de tortura onde está aquilo que para cada um é a pior coisa do mundo, o maior terror.

"A pior coisa do mundo é diferente para cada pessoa", explica-lhe o carrasco. "Pode ser morte pelo fogo, enterro em vida, afogamento, empalamento. Ou qualquer coisa banal, nem sequer fatal." A seguir, confronta-o com o seu peculiar pavor. Winston sabe que o objetivo da tortura não é matá-lo, que há uma forma de escapar ao tormento; não se trata de confessar, porque o torturador já sabe tudo. E descobre: "Façam-no a Julia. Não a mim. Não quero saber do que lhe façam. Façam-no a ela. Não a mim. Não a mim."

A tortura acaba aí: Winston traiu Julia, o amor e a ideia que tinha de si. Viverá para ser servo - como ela, que ante o pavor soçobrou do mesmo modo. "Antes tu que eu", disse cada um deles, entregando o outro.

Em 1984 não há heroísmo, não há redenção - só capitulação e desistência, conformismo, abandono e controlo total do indivíduo pelo Estado totalitário. George Orwell publicou-o em 1949, inspirado na Alemanha nazi e no estalinismo. Cinco anos antes, Jean-Paul Sartre, que viveu o nazismo na França ocupada, escrevia, em A República do Silêncio, sobre o mesmo - o indivíduo face ao totalitarismo, ou, mais simplesmente, face ao terror. Para concluir: "Nunca fomos tão livres como sob a ocupação alemã. (...) a cada segundo vivíamos na sua plenitude o sentido desta pequena frase banal: "Todos somos mortais". A escolha que cada um fazia de si mesmo era autêntica porque era feita na presença da morte, porque poderia sempre exprimir-se sob a forma "antes a morte que..." E não falo da elite que foi a Resistência, mas de todos os franceses que, a todas as horas do dia e da noite, durante quatro anos, disseram não."

Na perspetiva paradoxal de Sartre, os ucranianos nunca terão sido tão livres como agora, quando escolhem resistir ao pavor da invasão russa e seguem o repto do seu presidente, mostrando aos invasores o rosto, não as costas; como na Rússia quem enfrenta leis cada vez mais totalitárias erguendo a voz contra a guerra, dizendo guerra, essa palavra proibida. Foi também Sartre, creio, que disse que há escolha mesmo com uma arma apontada.

Nas últimas semanas muito se tem discutido sobre Putin - se é ou não muito inteligente, como se acreditava, se é, como se acreditava, sobretudo movido pela racionalidade. Ou se está doido. Se a sua decisão de invadir a Ucrânia, de conquistar a Ucrânia - é disso que se trata, de uma guerra de conquista, uma cruzada - é fruto de pensamento cuidadoso e estratega ou se simplesmente se passou. Queremos perceber isso por uma única razão, claro: as armas nucleares que já ameaçou usar caso alguém se atravesse.

Se puder dar um palpite, acho que Putin não está clinicamente doido, e que fez aquilo que há muito planeia. Já tinha escrito sobre o seu desígnio em relação à "Grande Rússia" e o seu discurso/declaração de guerra, antes da invasão, foi muito claro quanto à anexação da Ucrânia, que, nunca é de mais lembrar, declarou não existir como país. Da NATO, que tanta gente insiste em indicar como motivo da agressão (porquê agora, se nada se passou de novo?), nem sequer falou.

Mas estou igualmente convicta de que Putin avançou também na deliberação de provar que, perante o maior pavor, a Europa ocidental, como Winston, dirá "a mim não". Que a Rússia é forte e nós somos fracos, que a Rússia é guerreira e nós faremos tudo pela (nossa) paz, incluindo ver os ucranianos ser dizimados enquanto choramos muito e lhes louvamos a coragem; que não arriscaremos saber se o bully está a fazer bluff ou é mesmo capaz de ir até ao fim.

Diremos que, e é verdade, há muito o sentimento de ser europeu e de pertencer à União Europeia não era tão forte (se alguma vez o fora). Que nunca houve tantos países a querer nela entrar e reforçá-la; que nunca tinha havido tanta gente a pensar na necessidade de um exército europeu e de maior autonomia e união da Europa em todos os aspetos. Que nunca, nem mesmo na pandemia, tínhamos sentido precisar tanto uns dos outros. Esse milagre Putin fez, paradoxalmente - como essa coisa terrível de pôr pacifistas antinuclear a sentirem-se aliviados por haver dois países na Europa Ocidental com armas nucleares (quem imaginaria isto há um mês?).

Mas tudo isso não nega o essencial desta situação impossível. E o sabermos - se não formos ainda mais parvos do que Putin nos crê - que se este autocrata odioso conseguir anexar a Ucrânia, não haverá razão nenhuma para não continuar por aí fora. É aqui que estamos, no quarto 101. A escolher. Porque, como Sartre tão bem nos explicou, não existe isso de não ter escolha.

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