Ninguém esquece o primeiro dia no emprego. Os colegas não nos conhecem, sabemos quase nada sobre as rotinas da empresa e sentimos uma necessidade aflitiva de provar a toda a hora aquilo que valemos. O incómodo passa à medida que as semanas e os meses também passam. Olhemos agora para as primeiras mulheres nos escritórios, nos hospitais, no exército ou nos tribunais cheio de homens. Os olhos deles como picadas de insetos, mostrando que o lugar delas não era ali..Imaginem como terá sido o primeiro dia - e os dias seguintes - destas 59 mulheres que Luísa Paiva Boléo e Margarida Pereira-Müller juntaram no livro As Primeiras - Pioneiras Portuguesas num Mundo de Homens, da Esfera dos Livros, que agora chegou às livrarias. Não há uma sequência cronológica a conduzir estas histórias. Nem tem de haver. Umas mais e outras menos conhecidas, cada uma, no seu tempo, arrombou uma porta e deu passagem a todas as que vieram a seguir. Juntas abriram brechas no domínio masculino em áreas como a magistratura, a militar, o cinema, a aviação, a música, os transportes, as engenharias, a política ou o desporto..São 59 mulheres, mas podiam ser muito mais. Algumas ficaram de fora porque o seu rasto desapareceu das bibliotecas, dos arquivos ou da memória dos vivos. Outras podem vir até a fazer parte de um segundo volume. "Quase todas as semanas descobrimos mais pioneiras", conta Luísa Paiva Boléo, não querendo ainda comprometer-se com um novo livro. É preciso aguardar. E enquanto se espera, oito pioneiras contam aqui as suas histórias..Rosa Ramalho (1888‑1977) A primeira barrista internacionalmente reconhecida.Rosa Ramalho era criança quando enterrou as mãos no barro e de lá tirou as primeiras criaturas pencudas, de bocas tortas, focinhos grandes ou carantonhas desdentadas. Regressou para junto delas todos os dias até fazer 18 anos e casar-se com um moleiro. Nas cinco décadas que se seguiram cuidou da casa, das tarefas do campo, dos sete filhos e do marido..Só voltou para as figuras da infância aos 68 anos quando ficou viúva. Sacerdotes com cornichos de diabo, humanos com cabeças de burro ou gigantones de terracota atraíram logo a curiosidade dos compradores nas feiras de Barcelos, onde ela nasceu a 14 de agosto de 1888. As estatuetas em tons de caramelo depressa ganharam horizontes, chegando também lá fora, onde hoje custam centenas de euros e fazem parte de coleções de particulares e de museus..Foi o pintor António Quadros que, em 1956, a descobriu numa dessas feiras e tratou de espalhar a arte dela pelos meios considerados cultos. Em 1968, a RTP entrevistou-a na sua aldeia, São Martinho de Galegos. A partir daí foi o estrelato. Nesse mesmo ano, teve um convite para conhecer Lisboa. Visitou o zoológico, saindo de lá "encantada com os macacos", foi recebida pelo presidente Américo Thomaz, distinguida com a medalha As Artes ao Serviço da Nação e convidada a participar na Feira de Artesanato de Cascais, onde as suas peças ganharam mais fama entre estrangeiros e portugueses. Rosa morreu em 1977 com 89 anos. Júlia Ramalho é a única dos 18 netos que segue hoje os passos dela, mas muitos outros artesãos seguem a corrente artística que ela, sem saber, fundou - o figurado de Barcelos..Helena Cunha (1971) A primeira condutora do Metro do Porto."É uma mulher a conduzir, vamos morrer!" Era para ter piada o comentário vindo de outra mulher. Helena Cunha ignorou-a e prosseguiu a viagem até à última estação da linha do Metropolitano do Porto, no Senhor de Matosinhos. O episódio ficou, tal como o comentário de mais um passageiro: "Isto é fácil, se até uma mulher consegue..." Corria o ano de 2003 e os utentes estranhavam uma mulher num lugar até então ocupado por homens. Entre colegas, Helena nunca sentiu diferença. Nem pensou que estaria a inaugurar um capítulo da história do Metro quando deixou o atendimento aos clientes e entrou no curso de agente de condução..Ao fim de oito meses, foi promovida. Passou para a regulação no posto central de comando onde se faz a gestão das carruagens paradas e em circulação, se detetam avarias e emergências e se tomam decisões rápidas sobre substituição de veículos e reforço de pessoal. Tudo tarefas, até 2004, entregues só a homens. Ficou um ano nestas funções porque, mais uma vez, foi promovida. Passou a técnica de planeamento e distribui até hoje serviços e horários aos reguladores e condutores..Uma década e meia depois de Helena Cunha chegar à condução de carruagens, o Metropolitano do Porto conta com 16 mulheres e 200 homens a desempenhar a mesma função. No Metropolitano de Lisboa, a distância é maior. A primeira maquinista entrou em dezembro de 2009. Hoje são três..Maria José Estanco (1905‑1999) A primeira arquiteta portuguesa.Maria José Estanco queria tirar um curso de Pintura nas Belas-Artes, mas a passagem de dois anos pelo Brasil fê-la mudar os planos. No estado de São Paulo assistiu de perto ao nascimento da cidade de Marília, em 1923, trabalhando com o engenheiro belga que dirigia a obra. Ao regressar a Lisboa, matriculou-se em Arquitetura e, no final do curso, em 1935, recebeu o prémio de Melhor Aluno de Arquitectura. Leu bem: "Melhor aluno.".A distinção de nada lhe valeu quando tentou exercer a profissão. Tudo o que se seguiu foram portas de ateliês fechadas e caricaturas na imprensa a ridicularizar a ousadia de uma mulher pensar que seria capaz de fazer "projetos de arquitetura exequíveis". Os trabalhos feitos foram poucos e somente para amigos, entre os quais uma casa de veraneio em São Pedro de Moel. Concorreu então ao ensino e foi professora nos liceus D. Filipa de Lencastre, Maria Amália e Passos Manuel, em Lisboa, e ainda no Instituto de Odivelas. Deu também aulas gratuitas de pintura e desenho a reclusos do Estabelecimento Prisional do Linhó, em Sintra. O mais próximo que chegou da arquitetura foi a decoração de interiores, atividade a que se dedicava com regularidade, tal como desenho de móveis e de joias..As Seis Marias - Maria Arminda Pereira, Maria de Lourdes Rodrigues, Maria Zulmira André, Maria do Céu Policarpo, Maria Ivone dos Reis e Maria da Nazaré Duarte Mascarenhas - As primeiras enfermeiras paraquedistas.A 8 de agosto de 1961, seis mulheres, todas elas de nome Maria, concluíram o primeiro Curso de Enfermeiras Paraquedistas, no Aeródromo Militar de Tancos. Maria Arminda Pereira, Maria de Lourdes Rodrigues, Maria André, Maria do Céu Policarpo, Maria Reis e Maria Mascarenhas estiveram em Angola, em Moçambique, na Guiné, em Goa e em muitos outros lugares onde a guerra do Ultramar provocou mortes, feridos e deslocados. Fizeram dezenas de operações aéreas, transportando doentes para os hospitais ou acompanhando famílias com crianças até à metrópole..Foram as primeiras de um total de 46 mulheres que, entre 1961 e 1974, desceram aos teatros de guerra para prestar auxílio às populações encurraladas nos conflitos entre as Forças Armadas Portuguesas e as forças dos movimentos de libertação das antigas províncias ultramarinas. Salvaram milhares de civis graças à sua coragem, mas também graças a uma outra mulher, também ela pioneira. Isabel Rilvas, primeira paraquedista civil e militar portuguesa e ainda primeira portuguesa a obter brevet de piloto, foi quem levou até ao subsecretário de Estado das Forças Armadas a proposta de criar um corpo de "enfermeiras dos ares"..Kaúlza de Arriaga, gostou logo da ideia, mas teve ainda de convencer o presidente do Conselho de Ministros, Oliveira Salazar, que embora a contragosto, acabou por ceder. Em maio de 1961, foram abertas vagas para o primeiro curso de formação de paraquedistas. As candidatas, entre os 18 e os 30 anos, teriam de ser solteiras ou viúvas sem filhos e com "boa formação moral, profissional e religiosa". Das 11 que concorreram, cinco reprovaram nos testes físicos e ficaram pelo caminho. As restantes seis são as Marias que já conhecemos..Adelaide Cabete (1867 ‑1935) A primeira grã‑mestre na Maçonaria.Começar a biografia de Adelaide Cabete com o facto de ter sido a primeira grã-mestre é verdade, mas é pouco. Ainda antes de entrar na Maçonaria e fundar, em 1926, a primeira Loja Feminina de Adoção, teve um percurso tão diversificado quanto determinante para o feminismo em Portugal. Em 1910, nas vésperas da implantação da República, passou 48 horas a costurar 20 bandeiras para serem hasteadas na manhã de 5 de outubro na Câmara Municipal de Lisboa. Dois anos mais tarde já estava a reclamar pelo direito ao voto das mulheres, integrando diversas organizações e participando em congressos feministas..Adelaide Cabete nunca ficou quieta. Nem sequer em criança. Muito cedo, perdeu o pai e foi trabalhar em casas de famílias ricas da cidade de Elvas, onde nasceu, para ajudar a mãe. A escola ficou de lado, mas aprendeu a ler e a escrever sozinha. Com 22 anos fez finalmente o exame de instrução primária, concluindo o liceu aos 27 anos. Inscreveu-se depois na Escola Médico-Cirúrgica e licenciou-se em medicina com 33 anos, abrindo um consultório de ginecologia em Lisboa. Manteve ao mesmo tempo o ativismo político, defendendo o acesso à saúde para todos, o encerramento das tabernas, o boicote aos brinquedos bélicos ou o fim da violência nas touradas..Discordando da ditadura militar, após o golpe de 1926, partiu para Angola em 1929, onde passou a defender também o direito dos negros aos cuidados de saúde. Foi aliás a única mulher a votar em Luanda no referendo constitucional de 1933. Será até ao fim uma ativista com muitas facetas, mas - é preciso que se faça justiça -, na sombra desta grande mulher esteve também um grande homem. Adelaide casou-se aos 18 anos com Manuel Cabete, intelectual republicano que a encorajou a estudar e a tirar a licenciatura, apoiando-a também na sua militância feminista e política. O nome dele desapareceu. O dela ficou..Maria de Lurdes Dias Costa (Bárbara Virgínia) (1923‑2015) A primeira realizadora de cinema.Maria de Lurdes Costa teve tudo para ser uma rapariga bem-comportada. Estudou piano, teatro e dança, interpretou trechos de ópera e declamou poesia na Emissora Nacional. Só faltou bordar e falar francês, mas ela preferiu os palcos onde dançou no Teatro Nacional São Carlos ou o grande ecrã onde se estreou como atriz em 1945 no filme Sonho de Amor, de Carlos Porfírio, usando o nome de Bárbara Virgínia..Depois de demonstrar os seus dotes artísticos, esperava-se que continuasse o seu percurso como atriz. E foi, portanto, com espanto que a 30 de agosto de 1946 o público de Lisboa se deparou com a estreia de Três Dias sem Deus, o primeiro dirigido por uma mulher. O acontecimento pôs toda a gente a falar desta rapariga, então com 22 anos. Não bastava ter sido a primeira cineasta, o filme foi também escolhido para representar Portugal na primeira edição do Festival de Cannes, juntamente com Camões, de Leitão de Barros..Foi a sua primeira longa-metragem - com um custo de 700 mil escudos -, mas também a única. Depois disso, Bárbara continuou como atriz e declamadora até se mudar para o Brasil, em 1952, casar-se e abandonar a carreira artística. O nome dela, entretanto, caiu no esquecimento. E ao filme, esse, sabe-se lá o que terá acontecido. Sobram apenas 25 dos 102 minutos da película que conta a história de uma aldeia que ficou três dias sem o padre. Em 2015, a memória dela foi em parte restaurada. A Academia Portuguesa de Cinema criou o prémio Bárbara Virgínia. E, desde então, uma mulher do cinema é distinguida todos os anos..Lurdes Baptista (1964) A primeira calceteira.O ofício de calceteiro, tal como hoje é conhecido, surgiu em meados do século XIX, mas será preciso acelerar até 1991 para encontrar Lurdes Baptista, a primeira mulher a concluir o curso nas oficinas da Casa Pia de Xabregas, em Lisboa. Foi nas calçadas da cidade de Almada que começou, mas o que não falta é chão onde o trabalho dela se estende - da Rua Augusta à Rua dos Correeiros, passando pela Praça da Figueira, na Baixa alfacinha, só para citar os casos que ficam bem em qualquer currículo..De joelhos na pedra e costas dobradas durante horas seguidas, ouviu comentários de toda a espécie, mas também incentivos de quem passou na rua e descobriu uma mulher no meio de homens. Do que ela gostava era de cortar os cubos de basalto e de calcário até ganharem a forma perfeita para se encaixarem nos desenhos projetados pelos artistas. Mas neste ofício é preciso fazer tudo. E o que lhe pesou foi carregar pedras de um lado para o outro, percorrendo, muitas vezes, grandes distâncias..Ao fim de 12 anos de trabalho ininterrupto surgiram dores nas mãos, lesões, tendinites e, por fim, uma operação aos ombros que deixou sequelas. O médico receitou-lhe uma ocupação menos exigente e hoje "já não está na rua", contou ela às autoras do livro. De início custou-lhe largar o ofício, mas com o declínio da profissão, Lurdes sabe que, mesmo que quisesse, não teria grande futuro como calceteira..Noemie Freire (1988) A primeira submarinista.Há mais de um século que a Marinha Portuguesa tem submarinos, mas só em dezembro de 2018 admitiu a "primeiro-marinheiro" - sim, leu bem outra vez: a patente não tem género feminino - no curso de especialização. Noemie Freire, filha de emigrantes franceses, veio para Portugal com 10 anos e, aos 30, tornou-se a única militar da Esquadrilha de Superfície ao lado de 80 homens..Treinada para operar em equipamentos de guerra eletrónica, captar imagens operacionais e participar em ações de manutenção dos sistemas de armas, embarcou no início deste ano na primeira missão. Apesar de caloira, as 900 horas de navegação deram-lhe uma ideia realista do que iria encontrar no fundo do mar: semanas consecutivas sem ver a luz do dia, trabalho intenso e gestos contidos para não atrapalhar os colegas a trabalhar no mesmo cubículo do que ela..Todos juntos e apertados poderá provocar uma certa falta de ar, mas tem as suas vantagens. Não sobram muitas alternativas senão conhecer quem está ali ao lado. Trocam-se confidências, conversa-se muito sobre tudo e nada e os vínculos entre os camaradas vão ficando tão apertados como são os da família, conta Noemie no livro..O dia-a-dia a bordo de um submarino é sempre muito confinado e esse foi um dos motivos que a Marinha apresentou para só agora abrir vagas destinadas às mulheres. No curso de 2018 Noemie foi a única mulher, neste ano há mais duas inscritas. Faltavam condições logísticas para proporcionar privacidade. Só após os dois submarinos da classe Tridente terem sido adaptados com casas de banho e camaratas separadas é que as escotilhas se abriram finalmente ao género feminino.