Anozero, o desejo de reparar (em) Santa Clara-a-Nova

A segunda edição da Anozero - Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra tem como tema "Curar e reparar". A exposição que abre hoje em vários locais da cidade, como o Mosteiro de Santa Clara-a-Nova.
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Coimbra vive hoje um dia histórico. Uma frase que, de tão usada em tantos contextos, soa oca, mas pode-se dizê-lo com propriedade. O Mosteiro de Santa Clara-a-Nova - ou em rigor a parte norte - entra numa terceira fase, ou num ano zero, ao franquear as portas ao público da Anozero, bienal que ali apresenta propostas de duas dezenas de artistas. O tema da Anozero 2017 é "Curar e reparar". Mas aqui não há milagres à venda. "A arte não cura. Se a arte curasse a humanidade estava salva. Mas a arte coloca processos subjetivos perante nós que são interruptores para o nosso processo de descoberta", explica Delfim Sardo, curador da bienal.

Foi convento de clarissas até ao fim do século XIX, e da crença religiosa se passou para o uso militar com a instauração da república, e daí para o estado de quase abandono, com a desocupação castrense. Delfim Sardo recorda que foi às sortes num edifício adjacente (e que, apesar de ter sido aprovado na inspeção militar, não chegou a ser chamado para prestar serviço militar). Agora é a sorte do maior edifício de Coimbra, ainda nas mãos do Ministério da Defesa, a estar na ordem do dia. "Há um antes e um depois da Bienal para este edifício. O nosso papel é ativar isto. Competirá à cidade e ao país utilizar este ativador de uma forma criativa e inteligente, ou não. Não somos políticos, não fazemos gestão de património, fazemos desafios de arte contemporânea", comenta o diretor-geral da Anozero, Carlos Antunes, que salienta a relação do espaço com as obras de arte: "Se a bienal não fosse no Mosteiro seguramente seria outra, tal como as propostas seriam outras."

Não são palavras de circunstância: Ângela Ferreira, Julião Sarmento, Fernanda Fragateiro, Rubens Mano, Lucas Arruda, José Maçãs de Carvalho, Gustavo Sumpta e Gabriela Albergaria produziram propostas para aquele local (e outros seis artistas para outros espaços da Bienal), num total de 35 criadores.

A poucas horas da inauguração encontramo-nos com Delfim Sardo na Sala de Guerra, nome decerto inspirado na anterior ocupação. Na parede, os retratos oficiais de anteriores comandantes supremos das Forças Armadas: Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio. Pela mão do ex-diretor do Centro de Exposições do CCB e do diretor-geral e curador da primeira edição da Anozero percorremos mais de um quilómetro de corredores e salas e questionamo-nos como é que aquela, também ela, zona de guerra consegue estar a postos para receber os visitantes a partir de hoje. Há instalações a ganhar vida, técnicos em velocidade de cruzeiro, obras em curso. Cruzamo-nos com artistas absortos como José Maçãs de Carvalho, a visionar como preparam a sala em que vai estar a sua projeção, ou como o paulista Rubens Mano, que polidamente se escusa a descobrir a criação que está a concluir. Mas não temos dúvidas: mais um par de noites roubadas ao sono (como nos últimos dois meses, quando começou a a intervenção de limpeza ao espaço) e a Anozero está hoje a postos.

Para Delfim Sardo, a lógica que ele e a cocuradora Luiza Teixeira de Freitas imprimiram "é muito mais emocional do que narrativa, não há um tópico comum. O espectador é convidado a fazer um circuito com várias modulações emocionais e cognitivas e em que é proposto que descubra essa modulação". Quanto à relação com o mosteiro, o curador classifica de "muito interessante" o desafio. "Um edifício patrimonial deste género tem dificuldades, que tem que ver com a sua enorme escala, com acessibilidades e com que tipo de circuito se pede às pessoas para fazer num edifício que não foi feito para se circular. No entanto, tem possibilidades incríveis e os artistas que fizeram a obra especificamente sentiram a dificuldade de se adaptar à escala e às contingências do edifício."

Pela sua extensão (evitando a palavra monumentalidade), duas instalações saltam aos sentidos. A de Fernanda Fragateiro, que se apropria do antigo refeitório ao intervir num rasgo existente no chão. À volta, uma placa de espelhos dá uma outra profundidade ao local. Em volta, e por cima, fragmentos de edifícios reconfigurados em edifícios, "numa intervenção cirúrgica". E a de Julião Sarmento, que explora o jogo da luz e da sua ausência num corredor com cerca de 200 metros. Mas há muito mais para ver e ouvir, para reparar, como sugere o tema desta edição. A começar e a acabar na vista do mosteiro para Coimbra.

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