Anne Pingeot: a amante secreta de François Mitterrand sai do silêncio

Numa entrevista "sem pudor e sem tabus" à Radio France Culture, em cinco partes, a mulher que foi amante do ex-presidente francês fala da relação que escandalizou o país
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A mulher que durante 32 anos foi um dos segredos de Estado mais bem guardados do ex-presidente francês François Mitterrand decidiu pôr fim a um longo silêncio, com algum remorso, esta segunda-feira. "Não sei se foi uma boa ideia, não sei se é o melhor momento, talvez fosse melhor que estas revelações fossem feitas a título póstumo, para não se ouvir certas coisas enquanto se está vivo", confessa a discreta ex-amante do presidente, Anne Pingeot, numa entrevista, "sem pudor e sem tabus", à Radio France Culture. Ao longo de uma conversa de duas horas e meia com o historiador Jean-Noël Jeannenay, a reputada historiadora de arte aceita falar pela primeira vez em público da relação que escandalizou o país, em 1994, depois de a revista Paris Match ter revelado a vida dupla do presidente, sob a fotografia da filha escondida de Mitterrand e Anne, Mazarine Pingeot. A entrevista, dividida em cinco partes de 20 minutos, difundidas até sexta-feira, surge uma semana após Anne Pingeot publicar em livro as 1218 cartas de amor do presidente - Lettres à Anne 1962-1995 - e um diário íntimo do idílio clandestino - Journal pour Anne 1964-1970 - por ocasião do centésimo aniversário do nascimento do antigo chefe do Estado. Uma conversa inédita e exclusiva, a única reação pública aos dois livros da mulher "na sombra", que decidiu mesmo viajar para o estrangeiro durante a promoção da obra, para evitar os jornalistas.

Os dois livros e a entrevista permitem pela primeira vez completar a biografia do homem de Estado socialista, com um retrato íntimo de um presidente que endereça cartas inflamadas à sua "Animour" - o nome carinhoso com que trata Anne na correspondência - desde o início da sua carreira política nos anos 1960, durante a campanha para as presidenciais em 1981 ou durante as reuniões do Conselho de Ministros até às últimas horas de vida, quando escreveu "tu és a minha única possibilidade de vida", em 1996. "Tenho 73 anos e começo a ordenar as coisas (...) e o medo que as coisas não sejam ordenadas de forma correta é também uma das motivações deste livro", explica Anne, que se exprime 20 anos após a morte do ex-chefe do Estado e cinco anos após o falecimento da ex-primeira-dama e esposa "oficial", Danielle Mitterrand. Ao longo da entrevista, a conservadora honorária do Museu d"Orsay, especialista em escultura francesa, traça o início da relação extraconjugal entre a jovem de 20 anos e o político de 47 anos, um ano mais novo do que o pai. Um encontro entre a filha de uma família católica de província, natural de Clermont-Ferrand, e o líder socialista progressista e "tutor" da jovem na capital. "Nesta família era impensável não estar casada", "os meus pais enviaram-me para Paris para que pudesse estudar Artes antes de encontrar marido". É na capital que o idílio - "uma libertação", tanto para a jovem na capital como para o homem mais velho que reconhecia na família ultraconservadora de Anne, o mesmo ambiente que o atormentou durante a infância - vai culminar no nascimento de Mazarine, a filha do casal.

Em agosto de 1974, Anne descobre que está grávida de Mitterrand e tem de revelar aos pais a relação com um homem casado. "Ele era um louco, foi um desafio incrível, mas ao mesmo tempo foi uma libertação, ele tinha a vontade de formar alguém, como se eu fosse o seu pigmaleão." Mas o silêncio de Anne, que só se tinha confessado brevemente a um jornalista inglês num livro publicado em 2013 (François Mitterrand, Retrato de um ambíguo), pode esconder outros remorsos. A mulher que foi a "a outra" do presidente, mesmo vivendo quase quotidianamente com ele, sempre se resignou à sombra, mesmo depois de ter inspirado a política cultural do estadista. Mitterrand, para quem a sua carreira política estava acima de tudo, nunca pensou em abandonar Danielle, por uma questão de moral e de protocolo - "ambos percebíamos esta trama do dever". Numa das suas últimas cartas a Anne, Mitterrand já seriamente afetado por um cancro incurável, admite: "Eu adoro-te e tu duvidas. Tu sofres por isso. Tens de aceitar que eu amo-te mal ao mesmo tempo que te amo infinitamente." A mulher que teve de abandonar o desejo de liberdade que veio procurar a Paris, ao lado de um homem mais velho, admite que o amor libertador de Mitterrand pode ter sido afinal a sua maior prisão, "na minha família reacionária, persistia aquela ideia de que a mulher é submissa, que não pode ter qualquer vida intelectual, neste aspeto Mitterrand ajudou-me, mas ao mesmo tempo esta submissão fez que aceitasse o inaceitável". Nos dois livros sobre Mitterrand, Anne cita o filósofo francês Montaigne, "o amor é deixar fluir o tempo".

Em Lyon

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