Tem pouco mais de metro e meio de altura, passa discreta pelos corredores, mas quando fala todos a ouvem. Annarella Sanchez, antiga bailarina cubana, comemorou ontem 20 anos da academia que fundou, em Leiria, e de onde têm brotado vários talentos no mundo do ballet. Não é só António Casalinho, o menino-prodígio que arrebata prémios nos maiores concursos internacionais. São muitos os jovens que nos últimos anos se dedicam com afinco a esta arte, muito graças à colaboração da Escola Secundária Afonso Lopes Vieira, pioneira na flexibilidade de horários para que os jovens possam treinar, por exemplo, seis horas por dia. A maioria dos alunos da Academia frequenta o ensino articulado (entre o 7.º e o 12.º ano). Os mais novos (5.º e 6.º anos) são alunos do agrupamento Correia Mateus, da mesma cidade. E entretanto juntou-se o agrupamento de escolas da Batalha. Há ainda os jovens que estudam por ensino doméstico, nomeadamente os estrangeiros, que não param de chegar. Desde que funciona como conservatório - das 09.00 às 18.30 -, a escola de Annarella tornou-se ainda mais concorrida. No espetáculo de domingo passado, mais de 150 alunos mostraram à cidade todo o trabalho que ali se faz, mesmo que o mundo já o tenha descoberto há muito.."É um orgulho perceber que contribuímos para a formação artística de tanta gente. Embora o conservatório tenha começado apenas há um ano, com autorização estatal, estes 20 anos em Leiria ajudaram muitos jovens, mesmo os que não seguiram o mundo da dança, profissionalmente", diz ao DN a professora, enquanto supervisiona um ensaio. "Acho que os ajudou a serem melhores como pessoas e profissionais, porque o ballet lhes deu muita organização, muita disciplina." Muitos desses sentaram-se agora na plateia do Teatro José Lúcio da Silva, para aplaudir os que agora brilham sob as luzes da ribalta. E sim, a escola está num momento de glória. Nos últimos anos, Annarella Sanchez tornou-se uma verdadeira criadora de génios. Não há programa televisivo de talentos que não fique marcado pela participação dos seus bailarinos, que colam o nome de Leiria a Portugal, em vez de Lisboa. Mais: não há concurso mundial que lhes escape. Foi um longo caminho até atingir esse reconhecimento, embora trilhado com estratégia. Quando a professora chegou a Leiria, em 1996, começou por dar aulas em dois colégios privados (ambos católicos): o Conciliar Maria Imaculada e o Nossa Senhora de Fátima, onde ficou durante 17 anos. "Neste tempo vi que havia muitas crianças talentosas em Portugal. Só que era só a minha palavra, quando falava do ballet. E, quando se abriu a internet, as pessoas perceberam e comprovaram que era possível ir longe com a dança. Foi quando um grupo de pais - que me apoiou bastante - percebeu que os meninos gostavam e tinham talento. Que era preciso investir para os levar." Fala de António, Francisco, João Maggy, Laura, Margarida, Matilde, o grupo que nos últimos anos fez sair de Portugal "e confrontar o talento deles com os coreanos, os americanos, com o mundo inteiro". E recorda o que lhes disse no primeiro Youth American Grand Prix em que participaram: "Embora Portugal seja um país pequeno, sem grande tradição na dança clássica, vocês são capazes.".Força rapazes: vencer o preconceito.Annarella acredita que, aos poucos, se vai vencendo o preconceito de ver rapazes a dançar ballet. As sucessivas vitórias de António Casalinho nos concursos internacionais terão contribuído para isso, sobretudo entrando na cabeça dos pais, tantas vezes os primeiros a acolher a desconfiança. A professora já sabia da existência daquela competição desde que chegou a Portugal, mas demorou 12 anos até "poder aparecer pela primeira vez". Para que os pais percebessem que estavam a perder talentos. "Na dança é preciso pessoas inteligentes. E ao início as pessoas pensavam que não. Que os meninos só podiam ser médicos ou engenheiros, e que só podiam fazer o ballet como um hobby, e que no final o objetivo era entrar para a universidade." Annarella foi insistindo na mesma tecla: a dança tem um tempo, ser bailarino é uma carreira que acaba cedo, por isso é preferível apostar na dança primeiro "e fazer a universidade depois", para quem optar por um curso clássico. "Porque também existem universidades onde podem estudar Dança, Coreografia, História da Arte." Partindo desse premissa de que a dança precisa de pessoas inteligentes, acredita que foi isso que ajudou na formação de tantos talentos. E são muitos os que fez despontar, então. Ao campeão António Casalinho juntam-se vários rapazes e raparigas que nos últimos anos conquistam sucessivos prémios em Portugal e no estrangeiro..A ajuda de Pedro Biscaia, até há pouco diretor da escola Afonso Lopes Vieira, "foi importantíssima". Faltava tempo para a dança na compatibilidade dos horários escolares, mas levantou-se uma onda de apoio coletivo, por parte dos professores da escola que fica do lado de lá da rua, na Gândara dos Olivais, freguesia de Marrazes, na periferia da cidade. Começaram por conseguir três tardes livres para os alunos, o que se revelou decisivo para o trabalho na dança. Ao mesmo tempo, Annarella foi a Cuba negociar com o governo, através do Ministério da Cultura, e veio de lá com um protocolo entre os dois países, abrindo-se a possibilidade de trazer professores cubanos até Leiria, detentores da metodologia "do ballet como deve ser, método Royal Academy. Porque aqui em Portugal encontrava bons professores de dança contemporânea, mas de ballet não. Eu pensava sempre: tenho de fazer o meu vocabulário. É como aprender um idioma quando somos mais velhos, nunca é a mesma coisa. Por isso, achava tão importante facultar aos mais novos a aprendizagem, logo de início"..A professora Raquel Agüero foi das primeiras a chegar, há quatro anos. Ao DN disse que esta "tem sido uma experiência maravilhosa. Quando chegámos não imaginávamos o trabalho que a Annarella já aqui tinha feito, com tremenda maestria. Ela já tinha os talentos bem diferenciados. O que não quer dizer que não trabalhasse com todos os outros meninos, mas ela conseguiu identificar aqueles que sobressaíam. E é por isso que alcançou esses resultados conhecidos"..Ensaiar seis horas por dia.António Casalinho continua a ensaiar num estúdio ao lado, para a gala de domingo, enquanto falamos com a diretora da escola. Aos 15 anos, soma vários prémios internacionais, os últimos conquistados em julho, no Concurso Internacional de Ballet de Varna, na Bulgária, considerado como as olimpíadas da dança. De lá trouxe a medalha de ouro na categoria de juniores, além de ter sido distinguido com o prémio especial para jovens talentos Emil Dimitrov, com o prémio especial para os bailarinos mais promissores (juntamente com a chinesa Siyi Li) e com o prémio especial para os mais jovens em competição (juntamente com a alemã Elena Iseki). Antes, porém, já Portugal o conhecia das notícias e programas de televisão, um sucesso que despontou quando venceu, aos 13 anos, os grandes prémios de dança em Paris e em Nova Iorque. É um rapaz afável, dedicado ao esforço que a dança lhe exige. Treina seis horas por dia, todos os dias da semana, no conservatório onde o rigor e a disciplina são imagem de marca. Ensaia agora com Laura, uma rapariga da mesma idade e idêntica dedicação, que vem todos os dias de Alcobaça para Leiria. Ao fundo do estúdio, enquanto o repórter do DN o fotografa, a atenção e silêncio de Francisco Gomes (outro jovem promissor do ballet português). Daqui a pouco hão de entrar no mesmo estúdio cerca de 30 bailarinas, entre os 14 e os 17 anos, onde se incluem Matilde, Margarida, Marta e Laura (par de António Casalinho), que ficaram conhecidas do público português como "os quatro Cisnes", grupo constituído para participar no Got Talent, também.."O reconhecimento internacional diz muito sobre a importância desta academia", sublinha Raquel. As professoras conhecem-se há muitos anos, desde o tempo em que Annarella levava os seus alunos a Cuba, na altura das férias da Páscoa, para participar num encontro anual. Agora têm a seu cargo alunos que vieram de Espanha, Itália, Grécia, Argentina, Brasil, Estados Unidos. Giulio Diligente é um deles. O rapaz italiano tem apenas 13 anos, e Annarella acredita que também ele "pode vir a ser grande talento". Os pais são responsáveis por uma escola de dança em Itália, tem dois irmãos já bailarinos profissionais. A família confiou-o à professora cubana, como tantas outras. Conta para isso com a ajuda de uma equipa técnica constituída por seis pessoas. Já lhe propuseram mudar-se para o norte do país, com a escola, mas Annarella recusou. "Leiria é o descanso. Ouço tocar o sino, aqui na academia. É atravessar a rua e os alunos estão na escola.".Nos cursos de verão deste ano passaram por ali cerca de 250 estudantes de vários pontos do globo. A Academia é composta por seis estúdios de dança, mas não bastaram. "Tivemos de pedir a sala de ensaios do Teatro Miguel Franco e um pavilhão da escola Afonso Lopes Vieira. Ao todo, eram nove estúdios a funcionar", conta. A par desse projeto desafiante - os cursos de verão -, a professora iniciou entretanto uma pequena companhia de dança clássica, para os estudantes que não têm trabalho, já todos graduados. "Precisamos de teatros para isso, para que eles possam trabalhar e ganhar consoante as bilheteiras", adverte..De Camagüey para Leiria.Annarella Sanchez chegou a Portugal em 1996, enamorada de um português que conheceu na Venezuela. Começou a dançar aos 9 anos, na cidade onde nasceu, Camagüey. Sempre quis ser bailarina, embora gostasse muito de teatro. "Penso que primeiro me enamorei das roupas, daqueles fatos lindos, e só depois do ballet. Quando tinha 22 anos foi operada às pernas, e nunca mais dançou. Mas já antes, na academia em que estava, mostrava vocação para ensinar. Foi quando partiu para a Venezuela. Em Cuba, sabia que estava rodeada por mar por todos os lados, e queria conhecer outros lugares. "Queria saltar o mar. Não pela situação política, mas para conhecer o mundo." O avô, médico estomatologista, partira para o México e depois para a Venezuela antes da revolução de 1959. E foi lá, então, que viria a conhecer o atual marido, pai das duas filhas adolescentes..De Cuba - onde regressa, amiúde - Annarella Sanchez guarda sobretudo o investimento na cultura, que começa muito cedo, no ensino básico. É isso, afinal, de que ainda sente tanta falta em Portugal: "A música, a dança e o teatro deveriam ser uma prioridade da escola. Mas feita de forma lógica." Antes de ter a academia, a professora chegou a dar aulas em projetos de ATL (atividades de tempos livres). Certa vez, em Mira d'Aire, o responsável disse-lhe que o sítio para dar aulas era no campo. E se chovesse? "Disse-me que afastava as cadeiras e desse numa sala de aulas. Assim não há condições. Mas tínhamos de pensar nisso a sério. Porque as artes tornam o indivíduo mais sensível. Quando cheguei a Portugal, o que mais me chocou foi o desconhecimento por parte dos miúdos. Em Cuba todos tínhamos educação musical na escola, desde pequenos, e todos sabem o que é uma valsa ou uma polca. Há uma aposta na educação cultural." E foi esse contraste que lhe entrou pela vida adentro, já em Leiria. Dava aulas na Bajouca, uma freguesia do concelho, e pediu a uma aluna que lhe fosse buscar à mala um CD que dizia "valsas e polcas". "Ela demorou muito. Voltou e disse-me: 'Professora, não encontro nada que diga vacas e porcas.' Aquela menina tinha 10 anos, não tinha 3 ou 4. Sensibilizou-me, aquilo. Percebi que era preciso fazer esse trabalho todo.".Nesses anos percorreu então muitas aldeias do distrito de Leiria. "E hoje em muitas delas há pequenas escolas de dança por meninas que foram minhas alunas. Por cobardia não estudaram dança. Não têm um nível elevado mas têm sensibilidade, e isso é muito importante.".Ao cabo de 20 anos a ensinar como dançar em pontas, milhares de alunos depois, a professora reconhece que o ballet exige muito investimento, financeiro também. Mas sublinha que "é tudo uma questão de prioridades. Há dias perguntei aqui a um grupo de adolescentes se venderiam o seu iPhone para pagar as aulas de ballet. E pedis-lhe que contassem os maillot que têm. Porque em Cuba o Estado dava tudo, mas só tínhamos dois. Às vezes os pais acham caro um workshop, mas não são capazes de ter um carro mais barato para a filha poder estudar dança... Não se pode ter tudo"..Nessa certeza de que "o sucesso é sempre sacrificado", aponta no entanto exemplos vários: "Tive aqui pais que deixavam de ter férias para investir na formação dos filhos." E, depois, há ainda o estigma: "Tem de haver uma sensibilidade para o povo português e para os pais. Não se pode querer que sejam todos engenheiros ou médicos. Porque não podem ser bailarinos?".Quando Leiria se sobrepõe a Lisboa.Se vivesse em Lisboa, o reconhecimento seria outro? "Acho que não. O que seria muito importante era conseguir fazer em Lisboa o trabalho que a Academia está a desenvolver em Leiria. Leiria tem um reconhecimento internacional e Lisboa não, apesar de contar com um conservatório nacional", frisa Anarella. "Há muitos meninos que vêm do Japão, e chegam a Lisboa pensando que vão estudar no mesmo conservatório do António Casalinho... Além disso, há imensas vantagens aqui: um quarto em Leiria consegue-se a metade do preço. É uma cidade tranquila, que permite uma concentração melhor. Eu lá [em Lisboa] não conseguiria fazer este trabalho da mesma forma." O que falta, então, afinal? "Leiria tem de se mostrar. E, se quer ser mesmo capital europeia da cultura, tem de o fazer. Quando estamos no estrangeiro as pessoas não sabem onde fica. Temos de falar de Fátima e da onda gigante da Nazaré para as situar." Numa altura em que duas escolas da Austrália e da China estão interessadas num intercâmbio, "é hora de o fazer".
Tem pouco mais de metro e meio de altura, passa discreta pelos corredores, mas quando fala todos a ouvem. Annarella Sanchez, antiga bailarina cubana, comemorou ontem 20 anos da academia que fundou, em Leiria, e de onde têm brotado vários talentos no mundo do ballet. Não é só António Casalinho, o menino-prodígio que arrebata prémios nos maiores concursos internacionais. São muitos os jovens que nos últimos anos se dedicam com afinco a esta arte, muito graças à colaboração da Escola Secundária Afonso Lopes Vieira, pioneira na flexibilidade de horários para que os jovens possam treinar, por exemplo, seis horas por dia. A maioria dos alunos da Academia frequenta o ensino articulado (entre o 7.º e o 12.º ano). Os mais novos (5.º e 6.º anos) são alunos do agrupamento Correia Mateus, da mesma cidade. E entretanto juntou-se o agrupamento de escolas da Batalha. Há ainda os jovens que estudam por ensino doméstico, nomeadamente os estrangeiros, que não param de chegar. Desde que funciona como conservatório - das 09.00 às 18.30 -, a escola de Annarella tornou-se ainda mais concorrida. No espetáculo de domingo passado, mais de 150 alunos mostraram à cidade todo o trabalho que ali se faz, mesmo que o mundo já o tenha descoberto há muito.."É um orgulho perceber que contribuímos para a formação artística de tanta gente. Embora o conservatório tenha começado apenas há um ano, com autorização estatal, estes 20 anos em Leiria ajudaram muitos jovens, mesmo os que não seguiram o mundo da dança, profissionalmente", diz ao DN a professora, enquanto supervisiona um ensaio. "Acho que os ajudou a serem melhores como pessoas e profissionais, porque o ballet lhes deu muita organização, muita disciplina." Muitos desses sentaram-se agora na plateia do Teatro José Lúcio da Silva, para aplaudir os que agora brilham sob as luzes da ribalta. E sim, a escola está num momento de glória. Nos últimos anos, Annarella Sanchez tornou-se uma verdadeira criadora de génios. Não há programa televisivo de talentos que não fique marcado pela participação dos seus bailarinos, que colam o nome de Leiria a Portugal, em vez de Lisboa. Mais: não há concurso mundial que lhes escape. Foi um longo caminho até atingir esse reconhecimento, embora trilhado com estratégia. Quando a professora chegou a Leiria, em 1996, começou por dar aulas em dois colégios privados (ambos católicos): o Conciliar Maria Imaculada e o Nossa Senhora de Fátima, onde ficou durante 17 anos. "Neste tempo vi que havia muitas crianças talentosas em Portugal. Só que era só a minha palavra, quando falava do ballet. E, quando se abriu a internet, as pessoas perceberam e comprovaram que era possível ir longe com a dança. Foi quando um grupo de pais - que me apoiou bastante - percebeu que os meninos gostavam e tinham talento. Que era preciso investir para os levar." Fala de António, Francisco, João Maggy, Laura, Margarida, Matilde, o grupo que nos últimos anos fez sair de Portugal "e confrontar o talento deles com os coreanos, os americanos, com o mundo inteiro". E recorda o que lhes disse no primeiro Youth American Grand Prix em que participaram: "Embora Portugal seja um país pequeno, sem grande tradição na dança clássica, vocês são capazes.".Força rapazes: vencer o preconceito.Annarella acredita que, aos poucos, se vai vencendo o preconceito de ver rapazes a dançar ballet. As sucessivas vitórias de António Casalinho nos concursos internacionais terão contribuído para isso, sobretudo entrando na cabeça dos pais, tantas vezes os primeiros a acolher a desconfiança. A professora já sabia da existência daquela competição desde que chegou a Portugal, mas demorou 12 anos até "poder aparecer pela primeira vez". Para que os pais percebessem que estavam a perder talentos. "Na dança é preciso pessoas inteligentes. E ao início as pessoas pensavam que não. Que os meninos só podiam ser médicos ou engenheiros, e que só podiam fazer o ballet como um hobby, e que no final o objetivo era entrar para a universidade." Annarella foi insistindo na mesma tecla: a dança tem um tempo, ser bailarino é uma carreira que acaba cedo, por isso é preferível apostar na dança primeiro "e fazer a universidade depois", para quem optar por um curso clássico. "Porque também existem universidades onde podem estudar Dança, Coreografia, História da Arte." Partindo desse premissa de que a dança precisa de pessoas inteligentes, acredita que foi isso que ajudou na formação de tantos talentos. E são muitos os que fez despontar, então. Ao campeão António Casalinho juntam-se vários rapazes e raparigas que nos últimos anos conquistam sucessivos prémios em Portugal e no estrangeiro..A ajuda de Pedro Biscaia, até há pouco diretor da escola Afonso Lopes Vieira, "foi importantíssima". Faltava tempo para a dança na compatibilidade dos horários escolares, mas levantou-se uma onda de apoio coletivo, por parte dos professores da escola que fica do lado de lá da rua, na Gândara dos Olivais, freguesia de Marrazes, na periferia da cidade. Começaram por conseguir três tardes livres para os alunos, o que se revelou decisivo para o trabalho na dança. Ao mesmo tempo, Annarella foi a Cuba negociar com o governo, através do Ministério da Cultura, e veio de lá com um protocolo entre os dois países, abrindo-se a possibilidade de trazer professores cubanos até Leiria, detentores da metodologia "do ballet como deve ser, método Royal Academy. Porque aqui em Portugal encontrava bons professores de dança contemporânea, mas de ballet não. Eu pensava sempre: tenho de fazer o meu vocabulário. É como aprender um idioma quando somos mais velhos, nunca é a mesma coisa. Por isso, achava tão importante facultar aos mais novos a aprendizagem, logo de início"..A professora Raquel Agüero foi das primeiras a chegar, há quatro anos. Ao DN disse que esta "tem sido uma experiência maravilhosa. Quando chegámos não imaginávamos o trabalho que a Annarella já aqui tinha feito, com tremenda maestria. Ela já tinha os talentos bem diferenciados. O que não quer dizer que não trabalhasse com todos os outros meninos, mas ela conseguiu identificar aqueles que sobressaíam. E é por isso que alcançou esses resultados conhecidos"..Ensaiar seis horas por dia.António Casalinho continua a ensaiar num estúdio ao lado, para a gala de domingo, enquanto falamos com a diretora da escola. Aos 15 anos, soma vários prémios internacionais, os últimos conquistados em julho, no Concurso Internacional de Ballet de Varna, na Bulgária, considerado como as olimpíadas da dança. De lá trouxe a medalha de ouro na categoria de juniores, além de ter sido distinguido com o prémio especial para jovens talentos Emil Dimitrov, com o prémio especial para os bailarinos mais promissores (juntamente com a chinesa Siyi Li) e com o prémio especial para os mais jovens em competição (juntamente com a alemã Elena Iseki). Antes, porém, já Portugal o conhecia das notícias e programas de televisão, um sucesso que despontou quando venceu, aos 13 anos, os grandes prémios de dança em Paris e em Nova Iorque. É um rapaz afável, dedicado ao esforço que a dança lhe exige. Treina seis horas por dia, todos os dias da semana, no conservatório onde o rigor e a disciplina são imagem de marca. Ensaia agora com Laura, uma rapariga da mesma idade e idêntica dedicação, que vem todos os dias de Alcobaça para Leiria. Ao fundo do estúdio, enquanto o repórter do DN o fotografa, a atenção e silêncio de Francisco Gomes (outro jovem promissor do ballet português). Daqui a pouco hão de entrar no mesmo estúdio cerca de 30 bailarinas, entre os 14 e os 17 anos, onde se incluem Matilde, Margarida, Marta e Laura (par de António Casalinho), que ficaram conhecidas do público português como "os quatro Cisnes", grupo constituído para participar no Got Talent, também.."O reconhecimento internacional diz muito sobre a importância desta academia", sublinha Raquel. As professoras conhecem-se há muitos anos, desde o tempo em que Annarella levava os seus alunos a Cuba, na altura das férias da Páscoa, para participar num encontro anual. Agora têm a seu cargo alunos que vieram de Espanha, Itália, Grécia, Argentina, Brasil, Estados Unidos. Giulio Diligente é um deles. O rapaz italiano tem apenas 13 anos, e Annarella acredita que também ele "pode vir a ser grande talento". Os pais são responsáveis por uma escola de dança em Itália, tem dois irmãos já bailarinos profissionais. A família confiou-o à professora cubana, como tantas outras. Conta para isso com a ajuda de uma equipa técnica constituída por seis pessoas. Já lhe propuseram mudar-se para o norte do país, com a escola, mas Annarella recusou. "Leiria é o descanso. Ouço tocar o sino, aqui na academia. É atravessar a rua e os alunos estão na escola.".Nos cursos de verão deste ano passaram por ali cerca de 250 estudantes de vários pontos do globo. A Academia é composta por seis estúdios de dança, mas não bastaram. "Tivemos de pedir a sala de ensaios do Teatro Miguel Franco e um pavilhão da escola Afonso Lopes Vieira. Ao todo, eram nove estúdios a funcionar", conta. A par desse projeto desafiante - os cursos de verão -, a professora iniciou entretanto uma pequena companhia de dança clássica, para os estudantes que não têm trabalho, já todos graduados. "Precisamos de teatros para isso, para que eles possam trabalhar e ganhar consoante as bilheteiras", adverte..De Camagüey para Leiria.Annarella Sanchez chegou a Portugal em 1996, enamorada de um português que conheceu na Venezuela. Começou a dançar aos 9 anos, na cidade onde nasceu, Camagüey. Sempre quis ser bailarina, embora gostasse muito de teatro. "Penso que primeiro me enamorei das roupas, daqueles fatos lindos, e só depois do ballet. Quando tinha 22 anos foi operada às pernas, e nunca mais dançou. Mas já antes, na academia em que estava, mostrava vocação para ensinar. Foi quando partiu para a Venezuela. Em Cuba, sabia que estava rodeada por mar por todos os lados, e queria conhecer outros lugares. "Queria saltar o mar. Não pela situação política, mas para conhecer o mundo." O avô, médico estomatologista, partira para o México e depois para a Venezuela antes da revolução de 1959. E foi lá, então, que viria a conhecer o atual marido, pai das duas filhas adolescentes..De Cuba - onde regressa, amiúde - Annarella Sanchez guarda sobretudo o investimento na cultura, que começa muito cedo, no ensino básico. É isso, afinal, de que ainda sente tanta falta em Portugal: "A música, a dança e o teatro deveriam ser uma prioridade da escola. Mas feita de forma lógica." Antes de ter a academia, a professora chegou a dar aulas em projetos de ATL (atividades de tempos livres). Certa vez, em Mira d'Aire, o responsável disse-lhe que o sítio para dar aulas era no campo. E se chovesse? "Disse-me que afastava as cadeiras e desse numa sala de aulas. Assim não há condições. Mas tínhamos de pensar nisso a sério. Porque as artes tornam o indivíduo mais sensível. Quando cheguei a Portugal, o que mais me chocou foi o desconhecimento por parte dos miúdos. Em Cuba todos tínhamos educação musical na escola, desde pequenos, e todos sabem o que é uma valsa ou uma polca. Há uma aposta na educação cultural." E foi esse contraste que lhe entrou pela vida adentro, já em Leiria. Dava aulas na Bajouca, uma freguesia do concelho, e pediu a uma aluna que lhe fosse buscar à mala um CD que dizia "valsas e polcas". "Ela demorou muito. Voltou e disse-me: 'Professora, não encontro nada que diga vacas e porcas.' Aquela menina tinha 10 anos, não tinha 3 ou 4. Sensibilizou-me, aquilo. Percebi que era preciso fazer esse trabalho todo.".Nesses anos percorreu então muitas aldeias do distrito de Leiria. "E hoje em muitas delas há pequenas escolas de dança por meninas que foram minhas alunas. Por cobardia não estudaram dança. Não têm um nível elevado mas têm sensibilidade, e isso é muito importante.".Ao cabo de 20 anos a ensinar como dançar em pontas, milhares de alunos depois, a professora reconhece que o ballet exige muito investimento, financeiro também. Mas sublinha que "é tudo uma questão de prioridades. Há dias perguntei aqui a um grupo de adolescentes se venderiam o seu iPhone para pagar as aulas de ballet. E pedis-lhe que contassem os maillot que têm. Porque em Cuba o Estado dava tudo, mas só tínhamos dois. Às vezes os pais acham caro um workshop, mas não são capazes de ter um carro mais barato para a filha poder estudar dança... Não se pode ter tudo"..Nessa certeza de que "o sucesso é sempre sacrificado", aponta no entanto exemplos vários: "Tive aqui pais que deixavam de ter férias para investir na formação dos filhos." E, depois, há ainda o estigma: "Tem de haver uma sensibilidade para o povo português e para os pais. Não se pode querer que sejam todos engenheiros ou médicos. Porque não podem ser bailarinos?".Quando Leiria se sobrepõe a Lisboa.Se vivesse em Lisboa, o reconhecimento seria outro? "Acho que não. O que seria muito importante era conseguir fazer em Lisboa o trabalho que a Academia está a desenvolver em Leiria. Leiria tem um reconhecimento internacional e Lisboa não, apesar de contar com um conservatório nacional", frisa Anarella. "Há muitos meninos que vêm do Japão, e chegam a Lisboa pensando que vão estudar no mesmo conservatório do António Casalinho... Além disso, há imensas vantagens aqui: um quarto em Leiria consegue-se a metade do preço. É uma cidade tranquila, que permite uma concentração melhor. Eu lá [em Lisboa] não conseguiria fazer este trabalho da mesma forma." O que falta, então, afinal? "Leiria tem de se mostrar. E, se quer ser mesmo capital europeia da cultura, tem de o fazer. Quando estamos no estrangeiro as pessoas não sabem onde fica. Temos de falar de Fátima e da onda gigante da Nazaré para as situar." Numa altura em que duas escolas da Austrália e da China estão interessadas num intercâmbio, "é hora de o fazer".