Animais Noturnos: O cinema de Tom Ford tem vida e literatura

Contra os velhos do Restelo da cinefilia, Animais Noturnos do estilista norte-americano estreia-se amanhã e é o acontecimento da temporada. Amy Adams e Jack Gyllenhaal são os protagonistas
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O cinema do maior criador de moda americano sofistica-se. Se no belíssimo Um Homem Singular, Tom Ford podia ser acusado (erradamente) de fazer imagens como performance de produção de moda, nesta adaptação ao romance de Austin Wright, Tony and Susan, sobre uma galerista de arte que é assombrada pelo manuscrito do romance do seu ex-marido, algo muda. Uma mudança para uma força narrativa e dramática que transborda cinefilia.

Filmado com uma desalmada intensidade e um requinte visual que entra pela nossa pele, Nocturnal Animals consegue ser muita coisa ao mesmo tempo: um melodrama clássico, um série B marado e ainda uma alucinação Lynchiana. E ainda remete para Pedro Almodóvar, Douglas Sirk e Hitchcock. Muito Hitchcock. Sempre com uma ideia insana de nos pregar partidas, de nos tirar o tapete...

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Amy Adams, mais frágil e forte do que nunca, é Susan, a galerista de sucesso que parece ter tudo na vida: amigos, um marido troféu e poder. Mas para além da fachada, há remorsos que a consomem. Isso e uma verdade que derruba a fachada: o marido pode estar a traí-la e o seu mundo de idolatrias já não a preenche, sobretudo quando recebe o manuscrito do romance do seu ex-marido Tony (interpretado com rigor por Jake Gyllenhaal), na verdade, o seu grande amor. À medida que começa a ler o romance, o espectador começa a ler com ela. E vamos vendo outro filme, em que há uma família numa estrada americana atacada por criminosos numa noite de pesadelo. Na manhã seguinte, o marido percebe que a sua mulher e filha foram assassinadas. Começa então uma investigação conduzida por um taciturno xerife (um Michael Shannon a piscar o olho à nomeação de melhor ator secundário nos próximos Óscares) para encontrar os animais noturnos que destruíram aquela família.

Susan, ao mesmo tempo, é sobressaltada por recordações do seu casamento. À medida que folheia as páginas do romance vai percebendo que um erro do passado poderá ter mudado toda a sua vida. Tudo isto à medida que a ação da história que folheia vai ficando mais negra, mais colada aos seus remorsos.

Animais Noturnos teve a sua estreia no Festival de Veneza, onde foi aclamado pela crítica e obteve o Leão de Prata (Grande Prémio do Júri), tendo automaticamente entrado no lote dos favoritos para os prémios da temporada. Não é muito descabido pensar que o filme de Ford possa mesmo estar entre os mais fortes na corrida para os Óscares. Mesmo sem querer fazer futurologia, Ford tem hipóteses fortes para a categoria de melhor realizador e Amy Adams é uma das frontrunners para a categoria de melhor atriz, ainda que ameaçada pela sua imensa interpretação em O Primeiro Encontro, de Dennis Villeneuve, atualmente em cartaz. Para a categoria de melhor filme já surgem mais dúvidas, em especial pela ousadia formal do próprio dispositivo narrativo (a Academia não deve ir tão longe...). Mas, obviamente, uma obra assinada por um designer de moda incomoda muita gente. O preconceito de uma certa cinefilia de rebanho vai fazer que haja vozes a gritar bem alto que Ford é apenas um esteta sem substância ou que todos os trunfos visuais do filme se esgotam no equívoco de um editorial fashion.

O gozo de Animais Noturnos está precisamente na opção de um cinema que não tem medo de iluminar o rosto dos atores. Um cinema em que a composição de um plano é orquestrada para as grandes emoções. Neste torreão de emoções intensas que é esta adaptação literária, a ideia de "beleza" ou "fealdade" é em si mesma todo um programa.

Ford tem dito em entrevistas que o cinema não é agora uma atividade paralela. Quem filma assim tem, e vai continuar, mesmo um império de moda por trás. A aposta da Universal neste filme foi arriscada mas parece estar a ter os seus dividendos: a sua estreia nos EUA, em circuito limitado no passado fim de semana, deu sinais prometedores nas bilheteiras. Fatores ou sinais que demonstram que a partir de agora Ford tem carta branca para filmar em Hollywood. A Single Man, de 2009, foi financiado pelo próprio Ford.

Preconceitos à parte, Animais Noturnos entra para o panteão dos grandes filmes cínicos de bom gosto. Claro que a sua câmara respira um fulgor chique que é inegável mas há ali vida e cinema. É um erro acatar o discurso preguiçoso da "influência dos anúncios publicitários". O que está aqui à frente dos nossos olhos é um imenso conto dos olhos tristes, feito com cinismo, bom gosto, novas noções de ficção e um humor perturbante. E, sim, o que acontece no fim é um verdadeiro twist. Com marca de autor, já agora.

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