Angústia no Pátio das Damas (uma ficção política)
Terça-feira, 5 de julho de 2016. Uma luz limpa e ainda morna derrama-se sobre Lisboa. Mas nenhum dos conselheiros de Estado, cujas viaturas sobem, quase em coluna, a rampa do Pátio dos Bichos, parece sentir a bondade da brisa subindo do Tejo. Os rostos contraídos refletem o inverno político em que Portugal voltou a mergulhar, precisamente quando alguma esperança na capacidade de iniciativa dos portugueses e suas instituições parecia ter regressado. Primeiro, timidamente, com o governo arrancado a ferros, por António Costa, apesar da derrota eleitoral em outubro do ano anterior. Depois, com "o duplo milagre português" nas presidenciais, usando uma expressão da imprensa internacional. Ser uma mulher a ganhar essas eleições já seria uma proeza, mas o verdadeiro milagre foi a vertigem onírica de ser a candidata de um partido da dita esquerda radical a bater o sempre afável entertainer televisivo das noites de domingo. Com a nova Presidente outro muro caiu, mas desta vez os escombros tombaram para cima do governo minoritário do PS, que via o Bloco de Esquerda tomar pelo sufrágio o Palácio de Belém.
Após a tomada de posse, em março, a presidente teve de enfrentar o seu primeiro desafio: promulgar o Orçamento do Estado [OE] de 2016. Depois de sucessivos atrasos, o OE foi discutido em Bruxelas no mês de fevereiro. As advertências que a Comissão Europeia fora deixando revelar acabaram por se traduzir numa humilhante experiência para o ministro Mário Centeno. Portugal estava ainda debaixo da disciplina do procedimento por défice excessivo, e o aumento de despesa pública, quantificado pelo próprio IGCP em mais 11 mil milhões de euros até 2019, não era aceitável. As exigências da CE e do Eurogrupo atingiam tanto a receita como a despesa. Contudo, Costa, movendo todos os seus frágeis cordelinhos europeus, conseguiu evitar o recuo nas medidas relacionadas com os salários, as pensões e os horários de trabalho, mas viu a carga fiscal aumentar, incluindo o sacrifício do simbólico IVA da restauração. O OE passou num Parlamento convulsionado, apenas com os votos do PS, e a abstenção do PSD. O PM explicaria à Presidente o ambiente gélido do Conselho Europeu, com toda a gente a pensar apenas no seu umbigo, desde Merkel, acossada pelos refugiados, a Cameron, obcecado com o referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia, até Rajoy, apostado em perpetuar-se, aliado a um PSOE miniatura. "Estamos por nossa conta"- concluiu Costa. E a Presidente promulgou o OE.
Mas o OE foi apenas o preâmbulo da tempestade que levou à reunião do Conselho de Estado. Havia clivagens, com expressão parlamentar permanente, entre o PS e a sua coligação de investidura. Vozes do PCE e do BE insistiam em que havia chegado a hora de o governo renegociar a dívida. Os ecos da instabilidade eram amplificados, na imprensa económica internacional, pelo veneno destilado pelos credores seniores do BES/NB, e das empresas interessadas nas concessões desautorizadas por Costa. Foram ignorados sinais claros, desde a desastrosa "solução final" imposta, no caso Banif, pela burocracia de Bruxelas e Frankfurt, de que a delicadeza do setor bancário luso aconselharia a não fazer muitas ondas. No início de maio rebenta a bomba. A DBRS, a agência de notação financeira de Toronto, a única que classificava a dívida de Portugal no limite positivo (BBB), degradou-a para BB. Uma reação em cadeia foi desencadeada: o BCE cortou o programa de compra de dívida a Portugal (QE); os bancos nacionais deixaram de poder financiar-se junto do BCE apresentando dívida do Estado como colateral; a má nota nacional espalha-se pelo setor económico e financeiro, prejudicando as empresas; os juros da dívida pública sofrem um brutal aumento; o BCE submete os bancos nacionais a um regime de liquidez de emergência (ELA), condicionado a uma recapitalização geral dos bancos nacionais, que só seria possível com um resgate à espanhola para o setor bancário, avaliado em 30 mil milhões de euros (para aliviar também parte do passivo nacional de 26 mil milhões da banca nacional junto do Eurossistema, no âmbito do Target 2). O ultimato político não foi publicado, mas tornou-se visível quando António Costa apresentou a sua demissão, e de imediato foi anunciada a disponibilidade do PSD e do PS para formarem uma coligação, com apoio parlamentar e sem necessidade de eleições, chefiada por Luís Montenegro e Francisco Assis. Era esse o tema central da reunião do Conselho de Estado: aceitar esse insólito governo ou correr o risco de entropia descontrolada até novas eleições.
Depois de se despedir de Adriano Moreira e de Francisco Louçã, os últimos a sair pela Sala das Bicas, Marisa Matias regressou ao seu gabinete. Só, afundou-se no sofá onde recebe os convidados e as delegações, trazendo sempre um qualquer assunto inadiável. O seu olhar demorou-se na nudez infantil e alegre dos anjos negros que sustentam os dois candeeiros das mesinhas laterais. A decisão está tomada, embora ainda se recuse a enunciá-la, sequer, em pensamento. Só nessa altura se recorda de que, exatamente um ano antes, o povo grego tinha votado maciçamente contra mais medidas de austeridade, num referendo convocado por um governo em desespero de causa. As imagens do que se seguiu fizeram a Presidente estremecer. Afinal, Marx não tinha razão. A história não repete sempre as tragédias sob a forma de farsa. Acontece que, na realidade, às vezes as tragédias podem repetir-se como outras tragédias. Iguais ou maiores.