Matias Damásio: "Augusta, a minha avó, é a mulher da minha vida"
Cantor angolano que anda nas rádios de muita gente, Matias Damásio atua neste sábado, dia 24 de novembro, na Altice Arena em Lisboa.
No espetáculo, onde cantará muitos dos temas do seu novo e quinto álbum, Augusta, contará com convidadas especiais como Mariza, Pérola ou Aurea.
Promete distribuir rosas vermelhas às mulheres, como fez há um ano no concerto do Coliseu dos Recreios, porque, como diz em entrevista ao DN, no estúdio onde grava em Portugal, "as mulheres têm de ser respeitadas". Foi isso que a avó materna lhe ensinou. A tal Augusta que dá nome ao álbum.
Pai de três filhos, um deles com autismo, Matias, de 36 anos, conta que foi por causa deles que decidiu revelar que sofreu abusos sexuais em criança, por parte de uma mulher mais velha. Anos mais tarde, reconhece também a importância de os homens assumirem as suas fragilidades e de as pessoas consultarem ajuda psicológica.
Além da questão dos abusos, o músico, que se define como uma pessoa romântica por excelência, sofreu muito com a pobreza e a guerra civil em Angola quando era criança. Faltou-lhe muita coisa. Admite. Mas não o amor. Da avó Augusta.
Na esperança de que a sua história inspire outros angolanos a perseguirem os seus sonhos e a não relaxarem quando conseguem uma primeira oportunidade, Matias Damásio costuma andar por todo o país a dar palestras. "Sou alguém que quer que o país se desenvolva e que as pessoas cresçam."
Diz que este seu quinto álbum, Augusta, é dedicado à sua avó materna. Porque sentiu a necessidade de fazer esta homenagem?
Porque a minha avó representa a minha essência, a minha base, de formação, de instrução, cresci com ela. O meu pai era militar, teve de ir para o Cuando-Cubango, levou a minha mãe e o meu irmão de colo. Eu fiquei com a minha avó porque eles já não podiam levar mais ninguém. Cresci com ela. Aprendi as coisas mais importantes da vida com ela, a dizer as primeiras palavras, a respeitar, a amar. Ela sempre representou muito na minha vida. Augusta é a mulher da minha vida. Ela morreu quando eu tinha 14 ou 15 anos. Hoje sinto-me mais preparado para fazer uma homenagem mais condigna.
Que momentos guarda na memória relacionados com a sua avó?
Vários. Lembro-me dela na horta de casa, a cozinhar na panela de barro. Eu doente e ela com os panos quentes. Lembro-me do abraço. Era uma pessoa que acolhia toda a gente em casa. Fazia uma panela grande de comida e havia enchentes em casa.
Era uma mulher de partilha...
Sim. Partilhava muito. E sempre que eu olhava para o céu, para um avião, porque nós morávamos perto do aeroporto, no bairro da Lixeira, em Benguela, ela dizia que era o meu pai que vinha aí. Só que, na verdade, ele nunca chegava.
Qual a coisa mais importante que ela lhe transmitiu?
Que o amor é a coisa mais importante do mundo. Todos os dias ela dizia que era importante perdoar, amar, que só com amor é que nós podíamos lutar pelas coisas, só com amor é que podíamos realizar os sonhos, que amar é a coisa mais importante do mundo, que as mulheres têm de ser respeitadas. E isso eu aprendi com a minha avó.
Noutra entrevista que fizemos há um ano contou que no bairro da Lixeira, onde vivia, havia sempre gramofones a tocar semba. E que foi com o semba que cresceu. Porém, neste álbum, não há muito semba. Porquê?
Os gramofones, que tocavam desde o semba do Bonga e N'gola Ritmos aos Kassav das Antilhas, mas nós também íamos às casas de vídeo ver o Michael Jackson e a Madonna. Era inevitável. Nós pagávamos para ver filmes nas casas de vídeo, e no intervalo era Michael. Tenho essa influência pop. Passei a ouvir outras músicas quando comecei a tocar violão. Porque comecei a ir aos bares e comecei a interpretar Djavan, Rui Veloso, Roberto Carlos, Luis Miguel. Hoje sinto que gosto do semba, amo o semba, ele está sempre comigo, mas há no meu país embaixadores do semba muito maiores do que eu, como o Yuri da Cunha, Bonga, Paulo Flores. Sempre usei o semba como base mas sempre procurei outros estilos. Mas, acredite, quando estou na Matemática do Amor, por mais que seja uma balada, há um gingado lá que vem das minhas bases e das minhas raízes. O que se passa é que eu sou um artista romântico e encontrei outras formas de transmitir este romantismo. Tenho 36 anos, ouvi muita música, viajei muito, tenho muitas influências. Claro que os alambiques e os gramofones do bairro da Lixeira tiveram influência para me levar para a música, mas hoje considero-me uma pessoa do mundo. E feliz por estar em Portugal.
Assume-se neste álbum então mais como um cantor romântico...
Não é propositado, mas sinto que tenho vontade. E sinto-me bem a falar das coisas de amor. Vou-me transformando. Sou romântico como pessoa. Esse álbum é dedicado a uma mulher que eu considero que é a mulher da minha vida, mas também é extensível a todas as mulheres, esposas, mães, irmãs. Todas. A mulher é o ser mais bonito que Deus fez.
Vai distribuir rosas vermelhas na Altice Arena, como fez no Coliseu dos Recreios há um ano?
Vou distribuir [risos]. É um gesto que tenho para com as mulheres que vão aos concertos. Uma rosa como símbolo da nossa proximidade, pela forma como interagem nas canções, mas também como exemplo para os homens na sala. Alguém tem de dar o primeiro passo, não é [risos]?
Vai ter quatro mulheres convidadas no seu espetáculo. Uma delas é a fadista portuguesa Mariza, que tem um tema - Quem Me Dera - escrito e composto por si. Em que é que se inspirou para escrever esta música?
Este tema já existia. Faz parte de muitos outros temas que eu tenho em carteira. Eu estou sempre a compor. Como nós temos um empresário em comum, que é o Ruela, ele ligou-me a dizer que a Mariza gostava de cantar um tema meu. Então fui lá buscar um tema que eu penso que se enquadrava com a doçura, com a voz e com a força da Mariza. O tema não foi feito para a Mariza, já existia. Havia lá muitas canções. Tenho sempre lá canções.
Lá? Lá é o quê? O seu baú?
Sim, lá, no meu baú. Tenho lá muitas canções. Escolhi o Quem Me Dera, ela gostou e gravou a música. E hoje é um sucesso, não só por ter sido escrito por mim mas por ser interpretado pela Mariza, que tem essa força que nós conhecemos. A Mariza é muito grande. Essa junção veio dar esse sucesso, com 11 milhões de visualizações, muitas vendas.
O que é que tem mais preparado para este concerto?
Além da Mariza, a Aurea, a Pérola, a Vanessa Martín, que são minhas convidadas. As rosas vermelhas. Não vai faltar um convite meu para as pessoas irem ao palco dançar um semba no pé. Vou convidar poucas pessoas porque o show tem de ser curto. Vou tentar selecionar três ou quatro pessoas. Vou lá com algumas músicas que não foram editadas cá. Tenho cinco discos e esse é o nosso segundo a ser editado cá em Portugal. Temos muitas canções de outros álbuns. Vou tocar violão. Para elas e para eles. Vou ter umas roupas lindas. Bailarinas giras [risos].
Este álbum reflete também, de certa forma, uma preocupação com a internacionalização, ou seja, de levar o Matias Damásio para além do espaço da língua portuguesa?
Eu faço sempre os meus discos com a intenção de que todos oiçam e que eles cheguem o mais longe possível. Quando compomos as músicas não existe essa temática da internacionalização. Eu faço as minhas músicas numa viola. Elas não são premeditadas. São canções. Claro que há esta preocupação de que, tal como chegámos a Portugal, cheguemos também a outros lugares. Não é uma preocupação na parte da composição. Do disco. É mais na parte dos sonhos. Na verdade, a linguagem desse disco é minha e não pretendo mudá-la para chegar aos EUA. Não ia mudar a minha forma de falar, a minha estrutura, para chegar especificamente a um mercado. Eu quero manter a minha essência como artista e esperar que as pessoas compreendam o meu sentimento. Espero que americanos, chineses e outros compreendam o meu sentimento mesmo sem perceberem a língua.
Já passa mais tempo em Portugal do que em Angola?
Eu vivo em Angola. Estou em Angola mas trabalho muito cá. Tenho muitas digressões cá. Mas também muitas em África, Moçambique, São Tomé e Príncipe, é praticamente repartido. Estou num lugar e noutro.
Fala-se muito de uma Nova Lisboa, em que tudo está misturado, num relacionamento já muito pós-colonialismo. Como descreve a comunidade angolana em Portugal?
Vivemos já numa fase completamente diferente da da era colonial. Essa foi apagada, extinta. Não existe já entre Portugal e Angola esse sentimento. Há milhares de angolanos a viver em Portugal. Milhares de portugueses a viver em Angola. Uns casam-se com outros, têm filhos, fazem famílias. Há muitos portugueses aqui nascidos em Angola, com amor e sentimento por Angola. Há as danças, os ritmos, as comidas que se cruzam. Os portugueses adoram Angola. Os angolanos adoram Portugal. Existem bairros de angolanos em Portugal. Como existem centenas de sítios e locais em Angola onde se concentram portugueses. Hoje dificilmente consegues identificar quem é o angolano e quem é o português. Encontras um negro que é só português. Depois um branco que é só angolano. Já conheci brancos nascidos no Huambo ou na Humpata. Já conheci negros que não conhecem Angola e nasceram em Portugal e são portugueses. Há uma fusão que é muito boa, que junta dois povos que, quer queiramos quer não, têm não só um papel mas uma ligação eterna. Angola e Portugal vão estar ligados para sempre. Todo o angolano tem um tio português, todo o português tem um primo angolano.
Por isso há muitas discussões que não fazem lá muito sentido...
Não. Não fazem mesmo. Se olharmos bem a fundo estamos muito mais ligados do que pensamos.
O Matias Damásio costuma falar do seu passado difícil, de criança em tempos de guerra, nas entrevistas que dá. Mas recentemente revelou, numa entrevista à SIC, que foi vítima de abusos sexuais quando tinha 12 anos por parte de uma mulher. Porque é que só falou nisso agora? Não estava preparado antes ou, por outro lado, acha que a sociedade é que não estava preparada para ouvi-lo?
Porque o jornalista [Daniel Oliveira] pôs-me contra parede. Não tinha pensado dizer isso. Há muitas coisas que eu não partilho, não pretendo partilhar, mas às vezes há coisas que saem. Eu ultrapassei essas coisas sozinho. Mas são coisas que temos de achar estranhas. Eu tenho um filho de 8 anos, outro de 10 e outro de 14. Não gostaria que acontecesse algo do género com eles, porque é horrível. Aquilo para mim, na altura, pareceu uma diversão. Comecei a sentir os efeitos mais tarde, com 20 e tal anos. Isto começa a afetar os miúdos depois. As consequências psicológicas vêm mais tarde. É preciso ter cuidado porque essas coisas não acontecem só com o género feminino. Uma das coisas que me fizeram abrir o jogo foi o facto de ter três filhos rapazes. É para eles perceberem que isto não é uma coisa boa.
Diz que nunca consultou um psicólogo, nem por causa disso nem por causa da guerra. Não acha que é um pouco fruto do que a sociedade ensina, que o homem não chora, aguenta, não se queixa, é forte?
Mas na verdade não é. Isso pode ter sido uma das causas. Mas também eu vivi numa realidade em que falar com um psicólogo era como falar chinês. Tudo é uma questão educacional. Muitas as vezes as pessoas não vão a um psicólogo porque não percebem a importância que isso pode ter na sua vida. Tem que ver com as nossas vivências. Aos 20 anos eu percebia lá para que é que servia um psicólogo? Mas hoje, falando com um amigo de coisas importantes, tens lágrimas nos olhos e percebes que existem pessoas que se formaram e que podem ajudar. Há muitos traumas que podem ser ultrapassados. Além disso, o psicólogo também se paga, eu na minha condição na altura não podia pagar. Então fui ultrapassando estas e outras coisas. Com 12 e 13 anos, vi muitas pessoas mortas no chão. Isso não é normal. Não é uma coisa que uma criança tenha de ver. Todas as crianças em Angola viram pessoas mortas no chão, com pernas para um lado e corpo para outro. Alguns viram até os seus próprios pais. Situações muito complicadas. Era comum ver mortos na rua. Era comum passar na estrada de Benguela e encontrar camiões com pessoas mortas no chão. Faz parte. Mas não foi possível ter. Também as pessoas hoje falam mais sobre isso. Os tempos são diferentes. Mesmo sem psicólogo, hoje, com a paz, as pessoas já debatem, já discutem alguns temas que antes não se discutiam.
Por causa da sua história sente que, de alguma forma, tem uma missão de ajudar outros a sair da pobreza e a ter um futuro melhor?
Nós, eu e a minha equipa, temos feito muitas palestras para funcionários ligados a todas as áreas em Angola. O objetivo é transmitir a importância da primeira oportunidade, que às vezes é o que nos foge. Quando damos o primeiro passo é que se define tudo. O que acontece é que as pessoas procuram emprego o ano todo, vão à luta, estudam e formam-se e, depois de conseguir o primeiro emprego, faltam no dia seguinte. O que é que se passa? Nós, pobres, temos o vício de relaxar quando damos o passo. E eu tento, nas minhas palestras, quebrar com isso. O pobre sofre tanto para chegar onde quer, que quando tem a primeira oportunidade, depois de chegar lá, relaxa. Isto é um problema em África. Nós dizemos que as pessoas não podem relaxar, atrasar-se, pois só têm uma oportunidade, normalmente. Quando o pobre consegue uma oportunidade tem de dar tudo, triplicar o ritmo de trabalho, para não perder a oportunidade.
Essa é outra das suas facetas, Matias Damásio, o motivador, ao estilo Ted Talks?
Sim. Dou muitas palestras pelo país todo, com estudantes universitários. Uso muito a minha história de vida para mostrar como é possível ultrapassar certos obstáculos na vida. Esse tem sido parte do meu contributo, além da editora para apoiar outros artistas, os projetos sociais. Temos a obrigação de passar esta mensagem, não só como artista mas também como cidadão e patriota, enquanto alguém que quer que o país se desenvolva e que as pessoas cresçam.