Angela Merkel. A chanceler que veio do leste

"Que dizer sobre Merkel? Uma líder carismática, que sabe o que quer."
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Gerd Langguth, o primeiro biógrafo de Angela Merkel, disse-me durante a campanha eleitoral de 2005 que a cientista criada na Alemanha comunista iria surpreender tudo e todos. Tinha toda a razão. A democrata-cristã derrotou o social-democrata Gerhard Schröder e de candidata com falta de carisma, como insinuava certa imprensa, passou a chanceler alemã e, mais do que isso, a quem tem posto e disposto na União Europeia nestes últimos 15 anos.

Mesmo acreditando que prepara a despedida, não tencionando tentar o quinto mandato em 2021, igualará os 16 anos de Helmut Kohl, o chanceler da reunificação de 1990 (embora não os 19 anos de Otto von Bismarck, o obreiro da unidade alemã na segunda metade do século XIX).

"Que dizer sobre Merkel? Uma líder carismática, que sabe o que quer. Uma mulher com um sentido de Estado acima do normal. Uma política que fez o seu caminho, subindo todos os degraus da carreira política. Quem diria que esta mulher, vinda da RDA, filha de um pastor evangélico, e com uma licenciatura em Química Quântica, iria tornar-se a benjamim do chanceler da reunificação das duas Alemanhas, Helmut Kohl, e com grande sentido de humor iria chegar a chanceler, a primeira mulher no cargo mais poderoso da Alemanha? E que não se ficou por um, nem por dois, nem por três, mas por quatro mandatos?", interroga-se Margarida Pereira-Müller, que estudou na Alemanha, é casada com um alemão e foi durante 29 anos responsável pela comunicação da Lufthansa.

Acrescenta Margarida Pereira-Müller que "Merkel não teve a vida facilitada. Não nos esqueçamos do papel da Alemanha na Europa e dos problemas que têm surgido nos últimos anos, quer económica quer social quer politicamente. A crise financeira, a crise dos refugiados, o Brexit, o crescimento dos movimentos da extrema-direita - só para nomear alguns. Merkel, com uma visão alargada e muito humana, teve a resposta certa. Quando milhares de refugiados se amontoavam às portas da Europa, abriu as portas da Alemanha - decisão que poderia ter-lhe custado o poder".

A antiga responsável pela comunicação da companhia aérea alemã salienta que Merkel "fez igualmente história no próprio partido, a CDU. Foi eleita secretária-geral do partido em 2000, no meio de um escândalo, mas era vista como uma solução interina por colegas masculinos que tudo tentaram para a destronar. Em parte chegaram a ter êxito. Em 2002, Merkel cede às pressões dentro do partido e apoia a candidatura a chanceler do então ministro-presidente da Baviera, Edmund Stoiber. Gerhard Schröder, do SPD, ganha, porém, essas eleições, deixando assim caminho aberto para Merkel ser reconhecida como líder".

Admiradora convicta de Merkel, Margarida Pereira-Muller sublinha que esta "tomou uma decisão inédita desde Konrad Adenauer a Helmut Kohl: apesar de continuar como chanceler, deixou a liderança do partido, tendo-a entregue a uma outra mulher: Annegret Kramp-Karrenbauer. Separar estas duas funções poderia ser sinónimo de enfraquecimento do poder. Mas tal não aconteceu. A chanceler com a sua última grande coligação deu estabilidade ao país numa altura de incertezas.

Paralelamente, Merkel deu um passo importante para a igualdade de género, nomeando mulheres para cargos políticos que até então só tinham estado em mãos masculinas, como foi o caso da nomeação de Ursula von der Leyen, a atual presidente da Comissão Europeia, para ministra da Defesa".

"Merkel ficará para a história como uma grande estadista, uma grande política, uma grande europeísta e uma grande mulher", conclui Margarida Pereira-Müller, referindo-se a essa Angela Dorothea Kasner nascida em 1954 em Hamburgo que por opção familiar foi criada na Alemanha comunista, na aldeia de Templin, a 90 quilómetros de Berlim.

"Apesar das diferenças políticas e ideológicas que conservo perante alguém de outra família política, e não esquecendo o quão claras foram essas divergências nos anos mais intensos da crise das dívidas soberanas e do acompanhamento dos pacotes de resgate, altura em que Angela Merkel se mostrou sólida defensora da linha clássica alemã e ordoliberal na gestão do euro, é impossível não reconhecer que escasseiam hoje estadistas empenhados nos valores da democracia e do multilateralismo como a chanceler alemã", comenta Pedro Delgado Alves, presidente do grupo parlamentar de Amizade Portugal-Alemanha.

Nota o deputado socialista que "a crise dos refugiados e a resposta humanitária que defendeu, contra populismos e até contra o seu próprio partido, em linha com os melhores valores do projeto europeu e do Estado de direito, foi talvez o momento mais revelador dessa dimensão política de Merkel. Mais recentemente, noutra escala, o seu papel no processo conducente à discussão e aprovação do pacote de apoio pós-covid, mitigando resistências antigas a algumas das soluções aprovadas, foi um momento equiparável, na medida em que soube ler e dar prioridade àqueles que são os riscos existenciais mais graves que a Europa enfrenta. Liderou e foi capaz de ajudar a construir as respostas urgentes".

"Finalmente, e num momento em que crescem as pulsões autoritárias e vão emergindo 'democracias iliberais' em vários pontos da Europa e do mundo, e em que os EUA recuam no seu empenho no multilateralismo que tem caracterizado o sistema internacional dos últimos anos, Merkel tem também sido uma das mais robustas vozes que são barreira ao populismo e que surgem em defesa das instituições e dos valores do direito internacional e da ordem internacional do pós-guerra, tem sido firme e inteligente onde outros tergiversam perante a Rússia e, no plano interno, confronta a extrema-direita, recusando cooptar o seu discurso ou tolerar a sua presença em soluções governativas", acrescenta o deputado.

Já Rubina Berardo, luso-alemã que foi deputada do PSD, afirma que "o essencial da política reside na mensagem, nas palavras e na ação. Contudo, quando se trata de uma mulher política, a sociedade cada vez mais presta demasiada atenção ao acessório - à roupa, à figura, à maquilhagem. A minha admiração pessoal pela chanceler Merkel centra-se na sua capacidade inigualável em superar essas barreiras à entrada na atividade política - de conseguir vingar precisamente no essencial da política".

Destaca ainda Rubina Berardo que "a sua saudável autoconfiança, em conjunto com uma grande capacidade de empatia, são características que fortaleceram a tomada de decisão da chanceler em situações tão difíceis como na crise migratória, nos atentados terroristas no mercado de Natal em Berlim ou no ataque à sinagoga em Halle no ano passado. A resiliência de Angela Merkel na política alemã, europeia e mundial é um exemplo para todas as mulheres - na minha opinião até mais do que Margaret Thatcher, porque não só conseguiu vencer num partido conservador, mas também por ser oriunda do leste da Alemanha numa altura em que a diferença entre 'as Alemanhas' era bem maior do que hoje em dia".

A ex-deputada social-democrata acrescenta que "é também importante dignificar aquele que abriu caminho político para Angela Merkel - sem o chanceler da reunificação Helmut Kohl, nunca teria existido uma chanceler Merkel. Foi a sua visão abrangente sobre o leste que integrou a cientista Dra. Angela Merkel na política nacional alemã".

Uma cientista e política de personalidade tão forte que embora casada com o cientista Joachim Sauer desde 1998 continua a usar o apelido Merkel, que é o do primeiro marido, de quem se divorciou em 1982, ao fim de cinco anos de casamento sem filhos. Aliás, aquela a quem os jornais alemães num misto de carinho e crítica chamam Mutti Merkel, "Mamã Merkel", nunca teve filhos.

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