Anatomias do crime
Valem mais, pela criatividade e pelo inesperado, as ruturas do que os seguidismos, os cortes estéticos ou estruturais do que os prolongamentos fora de horas, que quase sempre ficam abaixo das propostas iniciais - como as sequelas face aos originais. Percebe-se, assim, o propósito e o desabafo do escritor colombiano Juan Gabriel Vásquez: "Quero esquecer-me de toda essa retórica muito aborrecida que olha a América Latina como um continente mágico ou maravilhoso. No meu trabalho, há uma realidade desmesurada mas aquilo que encontro de desmesurado na América Latina está na violência e na crueldade da nossa história e da nossa política. Gostava de esclarecer que esta ideia, que obviamente se refere, num tom de sarcasmo carinhoso, a Cem Anos de Solidão - eu cresci com este livro e posso afiançar que a leitura desta obra, na adolescência, terá contribuído muito para a minha vocação, mas acredito que a componente do realismo mágico será aquilo que, de longe, há de menos interessante no livro. Eu proponho que se leia Cem Anos como uma versão, mesmo distorcida, da história colombiana: aí está o maior interesse da obra, com o massacre das bananeiras ou com as guerras civis do século XIX, não com as borboletas amarelas... Como todos os livros que são verdadeiramente grandes, Cem Anos de Solidão exige que os leitores a reinventem. Acredito que essa reinvenção deve ser feita com a ultrapassagem do realismo mágico. E o que tentei fazer, na minha obra, foi contar o século XIX colombiano com uma tónica radicalmente distinta, que - creio - será contrária ao que os colombianos puderam ler até agora."
Se esta declaração, destemida e honesta, foi feita a propósito de outra das obras de Vásquez (Historia Secreta de Costaguana, de 2007), ela mantém-se perfeitamente válida na abordagem a A Forma das Ruínas, agora editado em Portugal.
Trocamos o século XIX pelo seguinte, sem que amaine a maré de fúrias, mais aparentes, e de interesses, mais subterrâneos e profundos, que mantêm a desvalorização da vida humana. Há, de resto, uma série de viagens na histó- ria, quase sempre balizadas por dois assassínios - o de Rafael Uribe Uribe, a 15 de outubro de 1914, e o de Jorge Eliécer Gaitán, a 9 de abril de 1948. Ambos vistos como um desafio à tradição conservadora, religiosa e oligárquica da Colômbia, ambos disponíveis para - em momentos e por formas diferentes - abraçarem a causa dos mais desfavorecidos. Ambos vítimas de um sistema corrupto, em que uma teia que luta por subsistir descobre invariavelmente bodes expiatórios para assumirem o "braço armado" dos crimes. Ambos mortos nas ruas de Bogotá, um perto de casa, outro na vizinhança do escritório onde trabalhava. Acima de tudo, ambos reais - basta consultar a história do país - e ambos vítimas, em simultâneo, da coragem própria (inconsciência do perigo, dirão alguns, mais precavidos) e de conspirações que os melhores esforços não conseguiram provar, ilibando assim os autores morais dos acontecimentos.
O escritor-personagem
Bem pode Juan Gabriel Vásquez defender, no final da obra, que se trata de uma ficção: "O leitor que queira encontrar neste livro coincidências com a vida real terá de o fazer sob a sua própria responsabilidade." Está aceite o desafio, tanto mais que o cuidado do pormenor nas reconstituições, a verosimilhança às vezes aflitiva dos diálogos, a cadência a que tudo se vai desenrolando, nunca rimam com "fantasia". Levantam, como acontece na grande literatura, questões que se vão desenrolando como um novelo, cujo desfiar nunca é interrompido pelos sobressaltos - da verdade última sobre aquilo que parece uma obsessão ideológica (e tem, afinal, uma raiz absolutamente íntima e familiar, a morte de um familiar chegado) até ao difícil compromisso de um autor com a verdade que, em muitos passos, parece escapar-lhe como um animal em fuga, passando pela conciliação entre esse sentido do dever e as exigências do quotidiano (não confundir com "vida real", porque há aí uma equivalência periclitante), tudo cabe neste "romance".
Temos, ainda, a oportunidade de testemunhar os estados de alma do próprio escritor, transformado em personagem involuntária da narrativa - do desdém ao entusiasmo, do desânimo à dúvida, do cansaço à insistência, do cerco a que se deixa submeter por uma realidade que o subjuga até à convicta resignação de que não lhe resta escrever este livro que, de uma forma esmagadora, parte das anatomias do crime (ou dos crimes) para chegar ao que parece ser uma radiografia de um povo, das suas reações, das suas contradições, de algo que se confunde com a sua triste indisponibilidade ou a sua atabalhoada impossibilidade para aprender com as lições do passado.
Mais do que estragar a cada um a descoberta de um livro imenso, vale a pena transcrever a confissão de Vásquez sobre o seu próprio processo de abordagem e sobre as suas motivações: "(...) Não se escreve sobre o que se conhece e compreende, e muito menos se escreve porque se conhece e compreende, mas justamente porque nos damos conta de que todo o nosso conhecimento e a nossa compreensão eram falsos, uma miragem, uma ilusão, de maneira que os nossos livros não são, jamais poderão ser, mais do que elaboradas mostras de desorientação: extensas e multiformes declarações de proximidade. Tudo isso que eu julgava tão claro, pensamos então, revela-se agora pleno de duplicidades e de intenções ocultas, como um amigo que nos trai. Perante tal revelação, que é sempre incómoda e muitas vezes francamente dolorosa, o escritor responde da única forma que sabe fazer: com um livro."
Posto isto, resta garantir que, na perspetiva do leitor, as inquietações persistem mesmo depois das muitas páginas do livro. Como deve ser. Com um registo adicional: de Barcelona, pela mão de outro Vázquez (esse com "z"), Montalbán, já tínhamos ganho um Carvalho, Pepe, para a história da literatura. Agora, com Vásquez, chega à cena Carlos Carballo, outra figura que entra direta para a galeria dos inesquecíveis. Não se pode pedir mais do que isto.
Informação útil
A Forma das Ruínas
Juan Gabriel Vásquez
Trad.: Vasco Gato
Ed. Alfaguara
576 páginas
PVP: 20,25 euros