Investigadora e professora catedrática no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), Anália Torres coordena o Centro Interdisciplinar de Estudos de Género. A socióloga tem estudado as questões da família e de género, nomeadamente a repartição das tarefas domésticas. Defende que as mulheres são as mais prejudicadas na pandemia, mais uma vez..O que é que mudou no dia-a-dia com esta pandemia? Limitei ao máximo as saídas de casa e, também, mudou do ponto de vista dos apoios domésticos, havia coisas que não fazia e passei a fazer. Mas posso dizer que sou uma privilegiada, tenho uma casa espaçosa e agradável. E isso faz diferença, há pessoas que vivem em casas pequenas e que me dizem ter mais necessidade de sair de casa. Eu não o sinto com tanta urgência, aliás, posso dizer que gosto de estar em casa. E sou uma pessoa que me adapto relativamente bem às situações, as coisas mudam e temos de nos adaptar, não há que ficar a lamentar..Qual foi a primeira coisa que pensou em fazer com o fim do Estado de Emergência? Ir ao cabeleireiro, dentro das circunstâncias em que vivemos nos últimos dois meses, é uma prioridade. De resto, não fiz muita coisa diferente, continuo com o ensino à distância, com as reuniões através das plataformas, a trabalhar em casa. Saia para fazer compras no supermercado, com os devidos cuidados e distâncias; outras coisas, comprava online, não houve uma mudança radical..Como é que as famílias estão a viver esta fase? Há muitas dificuldades e as mulheres estão em situações muito mais difíceis de gerir que os homens, o que tem a ver com a gestão das tarefas domésticas e de todo o espaço dentro de casa. Se pensarmos em habitações pequenas, com crianças pequenas, e em alguém que está a trabalhar a partir de casa e com a preocupação de dar assistência às crianças - que estão na chamada nova telescola e com atividades letivas online -, é uma gestão muito mais complicada e stressante. Quando uma pessoa muda de espaço, desliga um bocadinho, quando está em casa, fica dividida entre dar assistência à família e o desempenho profissional. Os homens, muitas vezes, não estão tão implicados no cuidar das crianças e nas tarefas domésticas. E as crianças também estão com dificuldades por causa do confinamento, tudo isto cria um ambiente de tensão que pode ser complicado..As mulheres sofrerão as piores consequências desta crise de saúde? É o costume, elas já estão sempre nessa situação. Por um lado, são as mulheres que maioritariamente estão na linha da frente a nível da saúde. Há muito mais médicas, enfermeiras e auxiliares hospitalares, não é por acaso que temos uma mulher diretora-geral da Saúde, uma mulher ministra da Saúde. São também elas que dão apoio aos idosos, que trabalham nos lares e a ganharem pouquíssimo, muitas vezes, o ordenado mínimo. Por outro, numa situação de crise económica, são as mulheres que mais facilmente perdem o emprego, nas fábricas, nos restaurantes, etc. As mulheres são as mais sacrificadas na pandemia, não há a mínima dúvida, por questões pessoais e profissionais..A situação financeira tem influência? Se as pessoas tiverem condições económicas, se tiverem boas condições em casa, se os miúdos têm espaço para brincar, tudo isso pode aliviar essa tensão, mas, mesmo assim, a confusão de tempos e de tarefas no mesmo espaço torna as situações mais complicadas. E há pessoas que ficaram sem o emprego e a passar por muitas dificuldades..Uma das coisas que se diz é que vai haver mais divórcios. Há estudos que demonstram que depois das férias há uma maior tendência para o divórcio, não quer dizer que o divórcio ocorra logo, mas as pessoas começam a pensar na questão da separação nessa altura. O período das férias pode ser de uma grande distensão mas também pode ser de grande tensão. As pessoas estão em espaços pequenos e convivem mais tempo, pode ser complicado a gestão desse tempo. E depende da dinâmica do casal, se as pessoas estão bem, se gostam de estar sempre com o parceiro, este confinamento até pode ser positivo, depende de muitos fatores..Também acontece com os casos de violência doméstica. Esse é um dos problemas graves deste confinamento. Quando há relações violentas, a violência doméstica tenderá a acentuar-se..O que é que mudou a nível profissional? Mudou bastante, mas também tem aspetos positivos, quer eu, quer o meu parceiro, trabalhamos a partir de casa, através das plataformas online, continuámos a fazer as nossas vidas. Passámos a dar aulas sem ser de forma presencial e acabámos por descobrir que é mais viável do que pensávamos. Falar para um ecrã é uma coisa esquisita, estranha, mas depois vemos as carinhas das pessoas e percebemos, que é possível criar dinâmicas interessantes de base. Além de que não perdemos tempo em transportes..O mesmo volume de trabalho ou mais? Muito mais trabalho, no início, teve de haver uma adaptação a esta nova realidade, tinha a sensação que esforçava mais a voz. Lembro-me de, no início, fazer uma reunião online com várias pessoas e sai arrasada, muito cansada. Dava a impressão que falava mais alto, ainda não conseguia controlar o tom de voz. À medida que o tempo foi passando, consegui gerir muito melhor a voz e, depois, também tive algumas dicas de pessoas que já estavam habituadas a comunicar online, sobre as diferenças, a capacidade de concentração, etc..A interação com os alunos é mais difícil? Como são muitos alunos, há alguns que, de facto, não participam, que não querem mostrar a cara, há uma dinâmica mais difícil de controlar, mas também tive feedback de alguns professores que disseram ter a participação de alunos que não intervinham na sala de aulas..Há mais alunos a assistir? É a mesma coisa que com as aulas presenciais, depende se estão em avaliação continua ou em exame, quem já não ia não vai agora. De início, houve situações mais complicadas, as pessoas não estavam habituadas ou não tinham acesso às plataformas, houve necessidade de fazer adaptações, agora está tudo mais tranquilo..Vai ser esse o registo até ao final do ano letivo? Na Universidade de Lisboa já não vamos ter aulas presenciais a não ser as práticas e laboratoriais, que vão recomeçar em breve. No ISCSP não teremos mais aulas presenciais e estamos a estudar como será a avaliação. Fomos instruídos para fazer avaliação contínua, de forma a evitar que muitos alunos sigam para exame final..O que é que esta nova forma de dar aulas trouxe à docência? Acrescentou um maior domínio de metodologias e da capacidade de fazer mais coisas à distância, para as quais não estávamos preparados. Há muitos mais instrumentos para o ensino à distância do que pensávamos, Isto exige algumas competências que não tínhamos, mas aprendemos e temos resolvido as coisas da melhor maneira que soubemos Há toda uma técnica, a concentração, os timings, o que se pode e não pode fazer, para usar com estas novas metodologias..Instrumentos e metodologias que são para ficar? As aulas presenciais são sempre melhores, criam-se dinâmicas na relação face a face, há uma maior discussão e debate. Se calhar, as expectativas de que o ensino à distância fosse mais difícil não se comprovaram, mas é sempre preferível o ensino presencial. O ensino atualmente está muito longe de uma lógica tradicional, demos muitos saltos na forma de funcionamento de uma sala de aula, tem de haver debate, a matéria é dada de forma interativa, há um diálogo entre professor e aluno mais eficaz. Significa isto que à distância não se pode fazer? Pode fazer-se, de uma forma mais limitada mas também se pode fazer..Esta preocupada com a reação das pessoas ao fim do estado da emergência? Estou muito preocupada no sentido em que as pessoas podem não tomar os cuidados suficientes. Nunca tivemos uma situação deste tipo e não sei até que ponto não haverá uma espécie de explosão. Mas não estou propriamente aterrorizada, temos reagido bastante bem do ponto de vista global. Agora, há coisas que são difíceis de gerir, por exemplo, como é que se garante a distância nos transportes públicos, nos comboios da linha de Sintra? Há uma série de coisas com as quais não é fácil de lidar, terá que haver adaptações..Os transportes públicos são a área mais problemática? Pelo menos, são uma das áreas mais difíceis de gerir. Foi uma das questões que esteve na mesa quando discutimos a manutenção ou não do ensino à distância até ao final do ano letivo. Recomeçar as aulas presenciais obrigava à deslocação de um grande número de pessoas, à utilização de transportes e, por outro lado, não podíamos prolongar o ano letivo até setembro, seria uma confusão. As universidades já vão começar mais tarde o próximo ano. Dependemos do secundário e, habitualmente no final de agosto, já sabemos quem vamos ter como alunos, este ano não será nada assim. Além de que se fala na hipótese de um novo surto deste coronavírus e as universidades não têm espaço, nem dinheiro, para funcionar com todas as medidas de distanciamento e de desinfeção.