Anabela Moreira: "Tenho esse ar de atriz louca e gosto muito disso"

Insaciável. Essa é a palavra que por estes dias se cola melhor a Anabela Moreira, este mês a estrear-se como realizadora de ficção no telefilme da RTP,<em> Há-de Haver uma Lei,</em> mas sobretudo pelo protagonismo em<em> Mal Viver,</em> de João Canijo, onde é um sublime corpo em perda. Trata-se de uma das mais avassaladoras interpretações do recente cinema português. Para conferir nas salas amanhã.
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Beatriz Batarda disse recentemente neste jornal que ganhou rugas com o seu papel no filme de Marco Martins. Consigo também acontece esse processo de desgaste ou, por outro lado, consegue dar a volta?
Todas as minhas personagens deixaram-me marcas.

Físicas?
Físicas também, uma delas óbvia, no Mal Nascida, do Canijo: engordei 25 quilos e jamais voltei ao meu corpo normal. Na Ivete, do Sangue do Meu Sangue, pus unhas de gel nos pés e aquilo foi tão mal feito que fiquei para sempre com uma unha deformada. Porém, essas coisas físicas não implicam nada, não interferem. As personagens que levamos a sério deixam mesmo marcas.

A protagonista de Mal Viver que marca deixou?
Alterou uma série de formas de conduzir a minha vida pessoal, afastei-me de muitas pessoas. Certas coisas já não tolero mais agora...

Tem a ver com a toxicidade?
Sim! E com o narcisismo. Este filme fala sobretudo de uma patologia que é o narcisismo que em prole de si próprio destrói os outros. Refiro-me à personagem da Rita Blanco, a minha mãe, alguém que é incapaz de se esquecer de si própria e fazer um movimento de socorro em direção à filha. A verdade é que tudo nos muda na nossa vida. Nos processos tão intensos que se passam nos filmes do João, nós as atrizes, dizemos muitas vezes que não vamos conseguir voltar a uma coisa destas... Queixamo-nos que não conseguimos mais! Confunde-se tudo, mas desta feita consegui salvaguardar-me.

Aprendeu algo com terapia que tem usado no seu labor de artista?
Estudei psicologia até ao 4.º ano e sinto que não me ensinou essas ferramentas, embora tenha havido uma altura na minha vida em que fiz psicoterapia para autoconhecimento. E aí consegui perceber quais os processos que precisava para ultrapassar determinadas questões. Mas o trabalho do ator é uma análise tão constante e tão profunda que nos torna às vezes incapazes. Os atores não são pessoas normais. Enfim, não é fácil, podemos fazer isso de várias formas.

A Anabela faz da maneira mais difícil?
No fundo, todos fazemos da mesma maneira. E há também quem não gosta de falar dos processos.

Nos filmes de Canijo as atrizes não constroem as suas próprias dificuldades?
Não é bem assim. No caso de Mal Viver, pouco daquilo é meu. Ou melhor, tudo dali é meu e nada dali é meu... Pela primeira vez o João impôs-me determinadas coisas. Não fui eu a criar aquilo. O João apropriou-se de muita coisa minha durante os ensaios, mas depois tive pouca opção de fuga com esta personagem.

Por outro lado, ela é uma mulher muito organizada, muito rigorosa. Será uma capa?
É uma obsessão, uma compulsão. Quando se está muito focado em organizar e ter tudo sob controlo, todo o caos interior parece mais facilmente domesticado.

A toxicidade do díptico é muito feminina. Não poderá haver aquele descambar para aquele lugar comum machista que parece proclamar que "entre elas, as mulheres são tramadas"?
O João há muito que foge dos homens. Isso tem a ver com o processo dele e diz sempre que acha as mulheres mais interessantes. Mas, na verdade, ele é homem e, portanto, talvez seja mais fácil a observação de fora. Ainda assim, penso que esta toxicidade poderia ser verificada em homens - o narcisismo como patologia tanto existe em mulheres como em homens.

Recentemente vimo-la num momento marcante em Nação Valente, de Carlos Conceição. Foi um papel que mexeu com a sua própria intimidade?
Tinha acabado de chegar do plateau do telefilme que realizei para a série Contado por Mulheres e estava bastante insegura. Também não sei o que se passou: olhava para o Carlos a reagir ao que eu estava a fazer e pensava em mim como realizadora. Entrei num sítio de grande insegurança, senti que estava a fazer aquilo que os meus atores no outro filme tivessem feito... Sempre que o Carlos me vinha dizer algo, eu fazia uma segunda ou terceira análise tal qual como realizadora faria. Foi uma grande confusão e achei muito duras as duas primeiras semanas de rodagem. Depois de terminar a rodagem fiquei com vontade de falar com o Carlos: sentia que não tinha dado o suficiente de mim. Mais tarde, começam-me a ligar da produtora e a dizer que eu estava incrível. Nem quis acreditar, tinha feito Nação Valente num estado de grande fragilidade. Gosto tanto desse filme! Para o realizador, o filme é sobre a minha coisa, para mim é sobre salvar o meu pai que esteve na guerra colonial. Eu nunca consegui tirar o meu pai da guerra, nenhuma filha o consegue.

Voltando a Mal Viver/Viver Mal, foi importante estar a celebrar na passadeira vermelha da Berlinale aquela seleção oficial? Olhei para si e vi que estava emocionada...
Não vivi esse momento da melhor maneira pois estava entre as gravações da novela da SIC que me deixou ir e uma pausa nas filmagens do filme francês Le Procès du Chien. Ou seja, foi um favor eu poder estar lá e cheguei no dia da passadeira vermelha, tendo sido maquilhada em tempo recorde. Claro que nem pude ir à festa depois. Mas naquele momento em que o João sobe ao palco eu e a Rita Blanco desatámos as duas a chorar agarradas uma à outra. Enfim, é o culminar de muita coisa.

Sabe que cultiva esse lado de atriz louca, não sabe?
Tenho esse ar e gosto muito disso. Antes de ganhar peso para o Mal Nascida eu fazia muito sucesso em publicidade como modelo, era linda de morrer. Há anúncios que fiz que ninguém me reconhece, nem a minha mãe, na altura. Fui, por exemplo, a mulher de vermelho do porto Ofley e a rapariga do vinho verde. Depois disso, fiquei preocupada - queria ser vista como atriz séria. Após a experiência que não correu bem com o Noite Escura, decidi que tinha de me entregar a fundo.

Venceu o ano passado o Globo de Ouro de melhor atriz pelo trabalho em O Último Banho e no discurso disse "finalmente!". Era importante para si esse prémio?
Eu se não ganhasse já tinha encontrado uma frase para mim: a eterna nomeada! Fui nomeada umas 5, 6 vezes que esse título já não era mau. Mas subi ao palco sem nada preparado, aquilo foi horrível! Fiquei tão embaraçada, mas a culpa é deles: dão-nos álcool! Foi o discurso possível, mas não conta para nada.

Tem tido muito trabalho, o que é bom, mas já deu por si a pensar se não é em demasia? Pensa nessa questão de trabalhar possivelmente demais?
Agora sinto isso. O problema do ator é dizer não, sobretudo quando lhe apresentam algo que é irresistível porque é uma coisa diferente. E pensamos sempre que é depois que vamos conseguir respirar. Tive a sorte de fazer projetos incríveis mas, depois, acabaram por se engalfinhar todos. Por exemplo, o novo do Gabriel Abrantes recuou duas semanas e ficou em cima de uma série que estava a gravar para a RTP... Resultado: tive de fazer diretas.

Fica abalada fisicamente...
Sim, mas a minha preocupação é sempre para com os projetos.

Então porque é que se meteu recentemente na novela!?
Estava a recusar novelas todo este tempo! Quando veio este convite disse à minha agente, a Carla Quelhas, que não ia dar pois estava a fazer teatro, ao que ela me disse que poderia não aceitar mas que estava na altura de brincar com uma coisa diferente. Esta Sangue Oculto é uma comédia e um género completamente diferente, livre de se poder fazer segundas ou terceiras leituras do quer que seja. Pensei então que sim: quis experimentar aquilo! Quis colocar-me à prova. Numa novela um ator põe-se à prova!

Não o fez então por necessidade.
Não! Estava ali porque queria brincar àquilo! Até brincava com o produtor e dizia-lhe que por mês ganhava 4 vezes mais do que me estava a pagar. O Francisco Barbosa não acreditava...

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