Há pouco mais de um ano, Ana Luísa Amaral admitia, em entrevista ao DN (15/6/2021), a estupefação que lhe causara a atribuição do Prémio Rainha Sofia de Literatura Ibero-Americana (o que passava a incluí-la numa lista em que figuram, entre outros, Sophia de Mello Breyner Andresen, Nuno Júdice, Mário Benedetti, Nicanor Parra ou Joan Margarit): "Era final da manhã, andava na rua a passear a minha cadela, a Millie Dickinson, e recebi um telefonema de Madrid a comunicar-me a notícia de que era a escolhida desta 30.ª edição do Prémio. Fiquei tão perplexa que perguntei à senhora se tinha a certeza do que me estava a dizer. Acho que só acreditei realmente quando, logo a seguir, recebi outra chamada, do El País, a pedir-me um comentário.".Mas ao mesmo tempo que confessava a surpresa com tamanho desassombro, também prometia não descansar à sombra do sucesso e da consagração. Mulher de causas éticas e estéticas, associava o rigor da linguagem poética, a erudição e o cuidado formal (tinha uma paixão pelas Artes Plásticas, que se reflete frequentemente na sua obra) dizia nessa mesma entrevista ao DN, uma das últimas que deu: "Não acredito numa visão radical, para a qual só as mulheres podem ser feministas e só os negros podem escrever sobre o racismo. Como mulher branca, eu não posso sentir totalmente o que têm vivido os negros, mas posso (e devo) ser empática e solidária. Como tal, tenho propriedade para tratar esta questão. No meu próximo livro, que se chamará Mundo, voltarei a estes temas. Uma vez mais.".Essa vocação cívica foi, aliás, reconhecida, em nota de pesar, por António de Sousa Pereira, Reitor da Universidade do Porto (instituição onde Ana Luísa se formara e foi professora): "A sua obra literária irá certamente garantir que o nome de Ana Luísa Amaral perdurará para todo o sempre, mas quem teve o privilégio de a conhecer de perto terá a memória de uma pessoa generosa e uma ativista dedicada às causas da igualdade e da solidariedade social"..Nascida em Lisboa a 5 de abril de 1956 (mas a viver em Leça de Palmeira desde criança), a poetisa que morreu na sexta-feira, vítima de cancro, aos 66 anos, era professora aposentada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e autora de mais de três dezenas de livros de poesia, teatro, ficção, ensaio e literatura infantil (para além de tradutora de autores como Shakespeare, John Updike ou Louise Gluck), estando ainda representada em diversas antologias portuguesas e estrangeiras. Com os seus livros publicados em países como Inglaterra, Brasil, França, Espanha, Suécia, Itália, Holanda, Colômbia, Venezuela, México e Estados Unidos da América, já recebera antes deste Prémio Reina Sofia (promovido pelo Património Nacional Espanhol e pela Universidade de Salamanca) distinções como o Prémio Literário Casino da Póvoa/Correntes D"Escritas (2007), o Prémio de Poesia Giuseppe Acerbi (2007) o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (2008) e ainda o Prémio Francisco Sá de Miranda pelo seu livro Ágora, editado em 2020 pela Assírio & Alvim..Na sua longa bibliografia, destacam-se livros na sua área de especialidade como Dicionário de Crítica Feminista (Porto: Afrontamento, 2005), em co-autoria com Ana Gabriela Macedo, e a edição anotada de Novas Cartas Portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa (Lisboa: Dom Quixote, 2010). Organizou, com Marinela Freitas, os livros Novas Cartas Portuguesas 40 Anos Depois (Dom Quixote, 2014) e New Portuguese Letters to the World (Peter Lang, 2015). Na poesia, estreou-se em Minha Senhora de Quê, publicado em 1990, a que se seguiram, entre outros títulos, Inversos; Poesia 1990-2010; Vozes, Escuro; E Todavia; What"s in a name; Ágora, e o que viria a tornar-se o seu derradeiro livro, Mundo, publicado pela Assírio & Alvim em outubro do ano passado. Também publicou na área da Literatura infanto-juvenil, com várias obras incluídas no Plano Nacional de Leitura: Lengalenga de Lena, a Hiena; Zero a Oito; A História da Aranha Leopoldina; Gaspar, o Dedo Diferente e Como Tu..Com uma obra literária muito inspirada nas temáticas de género, Ana Luísa Amaral foi pioneira dos Estudos Femininos no nosso país, o que, como admitia nessa entrevista ao DN, causou alguma estupefação no meio académico na década de 1980: "Quando comecei a trabalhar nos Estudos Feministas, achava-se essa escolha um perfeito disparate. Agora é moda e ainda bem porque quanto mais pessoas falarem sobre estes temas, melhor será. Efetivamente foi através da Literatura que cheguei a esta área: eu tinha começado por estudar as obras de Sylvia Plath e Elizabeth Jennings mas, em determinada altura, a Maria Irene Ramalho Santos, minha orientadora de tese, mostrou-me a obra de Emily Dickinson e foi uma autêntica revelação. De repente, dei por mim a tratar as questões da escrita feminina, da autoria e do silenciamento.".Mulher com uma noção muito própria de transcendência, Ana Luísa Amaral dá conta dessa relação em vários dos seus poemas, mas no momento em que nos deixa, é impossível não lembrar estes versos de Testamento: "Que se lembre de mim/ A minha filha/ E mais tarde que diga à sua filha/ Que eu voei lá no céu/ E fui contentamento deslumbrado/ Ao ver na sua casa as contas de somar erradas/ E as batatas no saco esquecidas/E íntegras.".dnot@dn.pt