Amnistia só para jovens entre os 16 e os 30 anos levanta dúvidas constitucionais
A amnistia aprovada pelo Governo e que está agora na Assembleia da República (AR), que visa assinalar a vinda do Papa Francisco a Portugal para a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), pode pôr em causa o princípio constitucional da igualdade.
A advertência é feita pelos próprios serviços do Parlamento que, na nota de admissibilidade da proposta de lei, lembram que a medida é restringida a "pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do crime ou contraordenação, até dia 19 de junho de 2023".
Ora, a "diferenciação entre as pessoas penalmente imputáveis em função da idade", ainda que o "tipo de ilícito cometido tenha sido o mesmo", refere o documento, "poderá justificar a ponderação da conformidade desta norma com o princípio constitucional da igualdade".
Ao contrário do que é habitual a conclusão da nota não é definitiva: "A apresentação desta iniciativa parece cumprir os requisitos formais de admissibilidade previstos na Constituição e no Regimento da Assembleia da República". Como faz sempre que há dúvidas de constitucionalidade, o presidente da AR, Augusto Santos Silva, chama a atenção dos deputados para estas observações, que "devem ser consideradas no decurso do processo legislativo". Um processo que será bastante mais acelerado que o habitual, dado que será tratado com caráter de urgência.
No preâmbulo da proposta de lei, o Governo justifica a delimitação etária da medida com a natureza do evento que decorrerá no início de Agosto: "Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ". O texto acrescenta que "tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina".
Muito embora o articulado fale em "especiais benefícios" para jovens em anteriores amnistias, não foi o caso das três que foram decretadas por ocasião de outras visitas papais (em 1967, 1982 e 1991). E a nota da AR diz que apenas foram detetadas, em três leis, "normas específicas que estabeleciam que determinadas penas de prisão fossem substituídas por penas de multa, quando aplicadas a menores de 18 ou 21 anos de idade ou a maiores de 70 anos de idade". O documento cita vários acórdãos do Tribunal Constitucional, sobre amnistias e perdões de pena, em que é destacado, precisamente, o princípio da igualdade.
Para o constitucionalista Paulo Otero não há "nenhuma dúvida" de que esta medida é "inconstitucional". "Ninguém pode ser beneficiado em função da idade. E, claramente, existindo uma amnistia entre a idade W e a idade Y, está a ser concedido um benefício em função da idade", argumenta. Uma segunda vertente do mesmo princípio da igualdade é que "todos aqueles que, tendo cometido os mesmos ilícitos criminais", tenham uma idade superior ao estipulado, "estão a ser prejudicados": "Para estes continua a ser crime a conduta adotada". Perante este cenário, diz Paulo Otero, Marcelo Rebelo de Sousa deverá optar entre uma de duas hipóteses: ou por um veto político face à "clamorosa inconstitucionalidade"; ou pode desencadear a fiscalização preventiva do diploma junto do Tribunal Constitucional, com caráter de urgência.
Jorge Bacelar Gouveia também não tem muitas dúvidas que a diferenciação etária prevista no diploma do Governo é contrária à Constituição, desrespeitando o princípio da igualdade e o da proporcionalidade. "Se fosse uma medida genérica, ainda vá...", refere o constitucionalista, que diz não ver razões para uma amnistia ou perdão de penas por ocasião da visita papal. "Acho que a visita de um Papa não justifica nenhuma medida de clemência penal. Isto fere o princípio da laicidade do Estado, é dar a uma religião, ainda que seja a maioritária, uma preferência, uma autoridade superior às restantes confissões religiosas. E digo isto com à vontade, sou católico praticante", sublinha Bacelar Gouveia ao DN. "Além do mais pode dar a ideia de um aproveitamento político de um acontecimento religioso", acrescenta, defendendo que o princípio deve ser outro: "A Deus o que é de Deus, a César o que é de César".
O diploma do Governo determina um perdão de um ano para todas as penas até oito anos de prisão (sempre dentro da faixa etária entre os 16 e os 30 anos), sendo adicionalmente fixado um regime de amnistia abrangendo as contraordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda 1.000 euros e as infrações penais cuja pena não seja superior a um ano de prisão ou a 120 dias de pena de multa. São vários os crimes que ficam excecionados deste perdão, como os casos de homicídio, infanticídio, violência doméstica, crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, extorsão, discriminação e incitamento ao ódio e à violência, tráfico de influência, branqueamento ou corrupção, entre outros. Ontem, o Governo veio esclarecer que também os crimes rodoviários estão fora desta medida.
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