Ameaças de morte e acusações de nazismo para não deixar morrer Vincent

Tem seis anos a guerra feia entre familiares e médicos do francês Vincent Lambert, tetraplégico e em estado vegetativo há mais de uma década. Meteu tribunais, Conselho de Estado, apelos a Macron, o papa e a ONU, sentenças contra e a favor. Ainda não foi desta que chegou ao fim mais esta batalha legal em torno do suporte de vida artificial em pacientes irrecuperáveis. A primeira terá ocorrido nos EUA em 1976.
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"São nazis, é um crime." A mãe de Vincent Lambert reagiu assim esta segunda-feira ao anúncio, do médico responsável pelo filho, de que iniciara o processo de cessação da alimentação e hidratação artificiais e a sedação profunda que o ajudará a morrer.

Viviane, de 73 anos, e o marido, de 90, um ex-médico, apelaram ao presidente francês Emmanuel Macron para que interviesse, qualificando a decisão de deixar morrer Vincent de "crime de Estado cometido por violação do Estado de Direito." Mas nem Macron, que num post no Facebook na tarde desta segunda-feira disse não lhe caber intervir, nem o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, a quem pediram para reavaliar o caso e respondeu, também nesta segunda-feira, não haver factos novos que o justifiquem, nem tão-pouco o Conselho de Estado, ao qual também recorreram, atenderam os seus pedidos.

Caracterizados pela imprensa francesa como católicos fundamentalistas, os progenitores do ex-enfermeiro psiquiátrico, que nesta luta são acompanhados por uma irmã e um meio-irmão de Vincent, não desistiram, porém, de, como já sucedera em 2013, reverter o processo.

Interpuseram uma ação no Tribunal Criminal da cidade de Reims, onde o filho de 43 anos está internado, e um recurso no Tribunal da Relação de Paris, invocando a recomendação de 3 de maio do Comité dos Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU à França para que o país suspenda a decisão até que o organismo efetue uma investigação ao caso.

O governo tornou claro não considerar ter de acatar a recomendação, mas o Tribunal da Relação de Paris teve opinião diferente e na noite desta segunda-feira ordenou que a alimentação e hidratação de Vincent sejam retomadas de imediato e se mantenham enquanto o comité das Nações Unidas faz a sua investigação - para a qual o tribunal deu um prazo de seis meses. "Uma vitória extraordinária", comentou o advogado dos pais do paciente.

Do lado oposto, o dos médicos, estão a mulher e cinco irmãos de Vincent, assim como um sobrinho, a decisão de um tribunal francês no início deste ano, e as posições do Conselho de Estado e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Este último, em 2015, considerou que interromper a alimentação e hidratação artificiais de Vincent não viola o artigo 2º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (que garante o direito à vida), e voltou, em abril, a reiterar o mesmo.

Na base nas decisões favoráveis à interrupção da alimentação artificial está, além da opinião médica de que o estado do paciente é irreversível e que manter a alimentação artificial é "encarniçamento terapêutico", a garantia, pela mulher e um dos irmãos de Vincent, de que ele lhes dissera que não quereria ser mantido vivo numa situação de grande dependência.

"Recebi ameaças de morte"

A lei francesa é semelhante à portuguesa: não permite a eutanásia nem o suicídio assistido mas autoriza o desligar do suporte de vida ou a interrupção de tratamentos que sejam considerados inúteis ou "encarniçamento terapêutico", dependendo esta decisão dos médicos e da família se o paciente não pode dizer o que quer e se não deixou especificada a sua vontade em testamento vital.

Os pais de Vincent, porém, já anunciaram que vão processar criminalmente o médico atualmente responsável, Vincent Sanchez, e querem retirar-lhe o título profissional.

Em defesa de Sanchez levanta-se a voz do anterior médico responsável por Vincent, Éric Kariger, especialista em cuidados paliativos. Este, depois de concluir que Vincent não poderia recuperar, iniciara em 2013 uma primeira interrupção do suporte de vida, mas viu-a revertida por uma sentença de um tribunal administrativo, o qual considerou que a decisão não era válida porque os pais não tinham sido informados (fora a mulher de Vincent que dera o OK). Voltou a tentar em 2014; o tribunal ordenou de novo a continuação do "tratamento". A mulher de Vincent e o centro hospitalar recorreram ao Conselho de Estado, o qual funciona como o nosso Supremo Tribunal Administrativo, e que lhes deu razão. Mas os pais de Vincent subiram mais um degrau, colocando uma ação no TEDH.

Católico, militante do Partido Cristão Democrata e definindo-se como "pró-vida", Kariger acabou por abandonar o cuidado de Vincent Lambert, tendo sido violentamente atacado pelos seus correligionários. "Tornei-me um homem a abater. Recebi chamadas anónimas, ameaças de morte. Chegaram a ameaçar os meus filhos", conta. "Se fosse de esquerda e ateu, acho que me teria afetado menos."

Apoiando o responsável clínico atual de Vincent - "É um homem corajoso, que tem de fazer algo que permanece difícil, ser o responsável pelo fim do tratamento" - lamenta a tomada de posição do arcebispo de Reims (a cidade onde Vincent está internado), que acusou a equipa de Sanchez de querer deixar o seu paciente morrer à fome. "Sou um médico cristão, mas sou antes de mais um médico. Estou ao serviço do meu doente e não das minhas convicções. E em relação ao caso Lambert e à decisão que tomei, nunca me senti em conflito com as minhas convicções." Sobre as declarações do papa, que esta segunda-feira apelou "ao respeito pela vida até à morte natural", o médico não fez comentários.

Os precedentes do "direito a morrer"

O caso de Lambert é apenas mais um numa longa lista internacional de batalhas legais relacionadas com o estado vegetativo e os sistemas de suporte de vida. Um dos primeiros será o da americana Karen Quinlan, em 1975.

Quinlan, de 21 anos, foi diagnosticada em estado vegetativo persistente e os pais, considerando que não havia esperança de a filha recuperar e que estar ligada a um ventilador e a ser alimentada por sonda só podia causar-lhe sofrimento, pediram aos médicos para cessar o suporte de vida. Estes recusaram, alegando terem medo de ser responsabilizados civil ou criminalmente pela morte da jovem.

Os pais colocaram então uma ação no tribunal do Estado de New Jersey para que este ordenasse o "desligar das máquinas" com base no direito de Karen à privacidade e ao direito de tomar uma decisão privada contrariando o do Estado de mantê-la viva.

O tribunal recusou, dizendo que a decisão era médica e não judicial e que além disso a ação pedida equivaleria a homicídio. Recorrendo para o Supremo do Estado, porém, os pais obtiveram o que queriam: os juízes consideraram que pessoas capazes de tomar decisões têm o direito de recusar suporte de vida e que esse direito não desaparece quando já não conseguem afirmar o que querem. Assim, e dando como assente que os médicos não tinham recusado desligar o suporte de vida por motivos médicos mas sim por temerem consequências judiciais, o Supremo decidiu que se um conselho de ética de um hospital determinar que "não há nenhuma possibilidade razoável de um paciente regressar ao estado cognitivo", o suporte de vida pode ser retirado sem que os envolvidos, incluindo os médicos, possam ser civil ou criminalmente responsabilizados.

Quando desligaram o ventilador, porém, Karen continuou a respirar autonomamente. Os pais não pediram para remover a alimentação artificial e a jovem acabou por ter a morte declarada apenas nove anos depois, em 1985.

A guerra política por Terri Schiavo

Tendo criado um precedente legal, o caso de Karen só fixou jurisprudência para o Estado de New Jersey; já o de Nancy Cruzan, outra jovem mulher também em estado vegetativo, decidido em 1990 pelo Supremo Tribunal dos EUA, fixou-a para o país.

Nesta sua primeira apreciação do "direito a morrer", o Supremo Tribunal Federal concordou com a decisão do Supremo do Missouri, que disse poder o suporte de vida ser descontinuado mas que a decisão só cabia a Nancy. Uma vez que esta não tinha como dizer o que queria fazer, o tratamento só poderia ser interrompido se quem falava por ela, incluindo os pais, produzisse provas convincentes de que a jovem, se pudesse, pediria o fim da alimentação artificial.

Os pais de Nancy conseguiram convencer o tribunal do Missouri de que estavam a interpretar corretamente a vontade da filha e em dezembro de 1990 a sonda foi retirada.

Esta jurisprudência, porém, viria a ser desafiada pelo Congresso no caso de Terri Schiavo, que ficou em estado vegetativo precisamente no ano em que Nancy foi deixada morrer. Terri, de 27 anos, era casada e o seu caso, como o de Vincent Lambert, implicou uma guerra familiar. O marido pediu em 1998 que deixassem de a alimentar artificialmente e os pais opuseram-se. Seguiu-se uma batalha legal que o marido ganhou, tendo o tubo de alimentação sido retirado em 2003.

Os pais decidiram então, com o apoio de organizações religiosas, apelar ao parlamento da Florida para que este legislasse no sentido de a alimentação ser retomada. Jeb Bush, irmão do então presidente George W. Bush, era o governador da Florida e a lei foi feita à medida. Em 2004, o Supremo Tribunal da Florida decretou a inconstitucionalidade da lei por violar a separação de poderes, por delegar poder legislativo no governador e por lhe permitir tomar uma decisão sobre os direitos constitucionais de um cidadão.

Jeb Bush ainda tentou contestar esta decisão do tribunal junto do Supremo dos EUA, mas este recusou apreciar a sua o seu recurso. Em 2005, um tribunal da Florida determinou que o tubo de alimentação de Terri deveria ser retirado no prazo de 30 dias (que terminavam a 18 de março) a não ser que um tribunal superior interviesse. O juiz que presidia ao coletivo que tomou a decisão foi ameaçado de morte e passou a ter de andar com escolta armada.

Os legisladores da Florida fizeram nova lei para obrigar à reposição da alimentação, mas o senado local rechaçou-a. A guerra passou então para Washington: dois dias após a alimentação ser descontinuada, o congresso dos EUA reuniu-se de emergência, para passar uma lei que transferia a decisão sobre Schiavo para os tribunais federais. George Bush, em férias, voou para a capital de propósito para a assinar.

Tanto trabalho foi porém em vão: os tribunais federais viriam a recusar todas as petições dos pais de Terri e o Supremo Tribunal federal fez o mesmo. A 31 de março, Terri morria.

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