Amália já não gravou as canções de Fred Astaire, mas deixou estas
A voz de Amália entra de rompante logo após a abertura da orquestra. Someday he"ll come along / The man I love / And he"ll be big and strong / the man I love. Começa depois a trautear, diz qualquer coisa e, como se tivesse sido levada, cala-se. A orquestra continua. É Gershwin, claro. Mas, por momentos, quase parecia um fado. Não é. É só ela, Amália.
"Há pessoas que ouvem o disco e dizem: "Ah, ela canta isto à fado." Não se podem esquecer que esta maneira de cantar que nós achamos que é do fado é cantar à Amália. O fado antes dela não era assim. Tudo o que ela inventou é que é fado", diz Frederico Santiago. É ele o responsável pela edição de Someday, o disco lançado hoje que reúne as, por ela chamadas, "canções americanas" que, em 1965, Amália gravou sobre o som de uma orquestra conduzida pelo maestro inglês Norrie Paramor.
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A maioria das canções do álbum em que se contam clássicos como Summertime, Blue Moon ou The Nearness Of You foram editadas pela primeira vez em 1984 no LP Amália na Broadway. Dezanove anos depois daquele outono em que Amália terá gravado tudo em duas manhãs nos estúdios da Valentim de Carvalho. Outono de que se contam agora 50 anos.
Ao reportório já conhecido desde 1984 acrescem em Someday ("Qualquer dia", em português, em jeito de promessa de acabar o que ficou inacabado) quatro temas inéditos como os fados, acompanhados pela orquestra, Ai,Mouraria - de Frederico Valério que, curiosamente, haveria de fazer um musical para a Broadway, On with the show (1954) - ou Lisboa Antiga, assim como ensaios nunca editados, de que a versão incompleta de The Man I Love é exemplo.
As canções antes de adormecer
Por preguiça ou outro qualquer motivo, Amália não chegou a completar todas as orquestrações com a sua voz. Além das que estavam previstas, ficou a faltar - para quem a conhecia - I Love Paris, de Cole Porter, canção que, além de levar às boîtes de Nova Iorque, a fadista cantava em sua casa, já deitada, antes de dormir, rodeada pelos que lhe eram mais próximos. "Às vezes ficava até às cinco da manhã. Cantava coisas espanholas, cantigas de roda do tempo em que andava na escola, cantigas de folclore, e cantava coisas em inglês também." É Vítor Pavão dos Santos, sentado num café do jardim da Estrela, quem conta a história. Esta e tantas que o autor de O Fado da Tua Voz - Amália e os Poetas ou Amália - Uma Biografia testemunhou.
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Como Fred Astaire a salvou
Pavão dos Santos esteve naquelas noites em que, por vezes, ela "dava assim umas notas altas e dizia: "Não posso que já é muito tarde e as pessoas estão a dormir."" Como esteve em Paris quando Amália "levou uma mala tipo à prova de bala com a aparelhagem para ouvir as canções do Fred Astaire". Depois ficava "até às quatro da manhã a ver o [filme] Follow The Fleet." Chegou a dizer, conta Pavão dos Santos, que se tivesse gravado mais tarde as "canções americanas", escolhia as de Fred Astaire.
No documentário Amália - Uma Estranha Forma de Vida, de Bruno de Almeida, a fadista conta: "Estava convencida de que ia morrer, ou de que me ia matar, é a mesma coisa, é o mesmo resultado. (...) Ele ajudou-me muito, aquele homem. Às vezes, as pessoas dizem-me: a Amália tem-me ajudado muito, quando estou triste ou doente, ajuda-me muito quando a oiço ouvi-la cantar. E eu não percebia aquilo. Só percebo agora, depois da minha experiência com as cassetes do Fred Astaire"
Aconteceu num quarto de hotel em Nova Iorque, para onde foi depois de lhe diagnosticarem um tumor. Foi daí, em 1984, que escreveu uma carta para Portugal em que dizia: "gostava que continuassem na mesma, a seguir com o disco das canções americanas." Amália na Broadway sairia no próprio ano.
Frederico Santiago diz das canções do álbum que "os blues não estão assim tão longe do fado, são pessoas que cantam a própria tragédia". Acredita que em Someday "Amália está lá toda". Pavão dos Santos acena que sim.
O primeiro vai continuar nos arquivos da Valentim de Carvalho e há de ficar tudo editado até 2020, ano do centenário de Amália. O próximo álbum, adianta, será de folclore, e reunirá também três canções de Zeca Afonso.
É como se, com sobriedade, se respondesse ao pedido que ela deixou: "Quando eu morrer, façam o favor de chorar por mim."