É um momento raro, poucas vezes registado em disco e muito menos ouvido pelos fãs, que habitualmente só têm acesso ao produto final, desconhecendo os passos dados pelos artistas até se chegar a determinada canção. É precisamente esse processo que Ensaios revela, reunindo em dois discos todo o processo criativo de Amália Rodrigues, realizado em conjunto com os músicos, num longo processo de busca e repetição, até se atingir a perfeição - tal como todos a conhecemos nos temas imortalizados pela voz de Amália..O primeiro disco reúne gravações em estúdio, bem como as conversas com os músicos e o técnico Hugo Ribeiro. Já o segundo disco, gravado em sua casa, testemunha uma faceta criativa mais privada, no qual se ouve até a voz de Alain Oulman a cantar para Amália, evidenciando-se um processo de quase cocomposição entre compositor e intérprete.."As gravações de estúdio já as conhecia. São um conjunto que vale só por si e cuja raridade justificava a edição, até porque alguns takes podiam perfeitamente ser os definitivos. Entretanto, no ano passado, tive acesso a estas gravações caseiras, e fazia todo o sentido que fossem editadas juntas", diz ao DN Frederico Santiago, o cantor lírico e investigador musical responsável pela coleção integral da artista, que está a ser editada pela Valentim Carvalho.. Em ambos os momentos, gravados algures entre 1970 e 1971, sobressai o grande virtuosismo vocal e artístico de Amália Rodrigues, mas especialmente uma constante procura do ambiente perfeito para cada canção, que "vai muito além de uma simples mudança formal ou de uma variação aqui e ali". Como é notório, por exemplo, em Rosa Vermelha, o tema do qual sobreviveram mais provas gravadas.."É muito raro existirem gravações que testemunhem, desta forma, todo o percurso de uma canção, desde o seu nascimento até ao formato final. Nota-se a evolução das músicas ao longo dos takes. Há toda uma procura, em termos artísticos e de ambientes, para as músicas, e termos hoje a oportunidade de poder ouvir como foi percorrido esse caminho é bastante interessante", afirma Frederico Santiago, "sobretudo porque é tudo muito bom, não são restos. Há inclusivamente alguns inéditos e uma Amália mais nova, no auge da voz.".Um dos exemplos mais paradigmáticos, "da distância entre os pontos de partida e de chegada neste repertório", é o ensaio de Gondarém, "em que o acompanhamento quase folclórico, a dança percetível dentro da sala e até as palmas" em nada prenunciam a trágica toada publicada mais tarde em disco. Pelo contrário, Perdigão e Abril anunciam já as versões que se tornaram definitivas, enquanto em Rosa Vermelha é mostrada a melodia original, ouvida nos ensaios de estúdio, depois abandonada..Quanto a novidades, destaca-se a "nunca suspeitada", no repertório de Amália, Com Vossa Licença, uma espécie de tango que Alain Oulman compôs sobre o poema "Objecto", de Ary dos Santos, lido pelo poeta na famosa noite em que Amália recebeu Vinicius de Moraes, em 1968, e também ele presente neste ensaio em forma de festa, outra vez na famosa sala da Rua de São Bento. Quando Alain começa a tocar a melodia ao piano, ouve-se até Amália dizer a Rui Valentim de Carvalho: "Oh Rui grava!"."Este disco é pioneiro, porque não há assim tantos que revelem como os artistas chegam às canções. É algo que nem costuma ficar registado, e por vezes nem sequer reconhecemos o real valor deste processo, sem o qual nunca haveria as músicas como as conhecemos", sublinha Frederico, para quem este disco é também "uma prova da total liberdade artística e da falta de preconceitos políticos por parte de Amália Rodrigues", percetível através dos autores cantados - Manuel Alegre, Ary dos Santos ou Armindo Rodrigues..Aliás, a maior parte dos poetas musicados por Oulman, depois da sua prisão pela PIDE e consequente expulsão do país, em 1966, estavam ligados à oposição e os seus versos não o desmentem. E apesar de alguns terem insinuado que Amália apenas se estava a aproveitar da onda pós-revolucionária quando, em 1977, lançou o disco Cantigas Numa Língua Antiga, no qual alguns destes temas estavam presentes, estas gravações vêm provar exatamente o contrário, mostrando estes fados a ser trabalhados anos antes do 25 de Abril.."Temas como Meu Amor É Marinheiro ou o premonitório Abril já são cantados com a perfeita noção daquilo que queriam dizer. Amália fazia-se de parva, mas não o era, tanto que só interpreta estes fados ao vivo quando está no estrangeiro", sustenta Frederico Santiago. Alguns deles nem sequer fariam parte do alinhamento de Cantigas Numa Língua Antiga, e mesmo os que fizeram foram tão modificados musicalmente, que "estas suas primeiras versões assumem um estatuto de inédito absoluto"..O restauro das fitas originais esteve a cargo de Pedro Félix, atual coordenador do Arquivo Nacional do Som, que já há algum tempo trabalha com o Frederico Santos na digitalização dos arquivos sonoros de Amália Rodrigues. Neste caso, a principal preocupação do restauro passava por manter o registo o mais fiel possível ao original, de modo que nenhuma intervenção afetasse as características do ambiente, mas apenas atenuasse alguns efeitos sonoros indesejados, que prejudicavam a audição.."O objetivo é sempre que não se note o restauro", começa por realçar Pedro Félix. "A fita tinha as características normais de uma fita com 50 anos. Uma estava inclusivamente guardada na casa de uma pessoa, sem qualquer tipo de cuidado de conservação. Basicamente, preocupei-me em reduzir e atenuar todos os efeitos e fenómenos não resultantes da gravação original", explica..O que implicava manter as diferenças entre as sessões de estúdio e as caseiras: "Não queria aproximar ou uniformizar o som das duas gravações, porque são coisas completamente diferentes. Uma foi num estúdio, num contexto de ensaio, a experimentar soluções. E a outra é bastante mais informal, feita em casa, provavelmente apenas com recurso a um gravador doméstico, e esse ambiente mais informal e pessoal, de festa e tertúlia criativa, também foi mantido.".As faixas 11 a 15 do disco 2, por exemplo, reproduzem uma bobina gravada ao piano por Alain Oulman, provavelmente em casa de Amália, com leituras de novo repertório. Estas fitas serviam para depois serem ouvidas por Amália e, através delas, decorar as melodias. "Trata-se de um encontro entre compositor e intérprete a criarem em conjunto aquele material. Este tipo de registos normalmente desaparece e é por isso que este material é tão importante. Para o ouvinte comum pode parecer estranho haver sete ou oito versões do mesmo tema, mas é isso que torna o disco muito valioso, porque nos permite perceber a evolução da obra até ao formato final, numa evolução quase orgânica através de diferentes desenhos melódicos e interpretações. Melhor do que isto, só mesmo estando lá, a assistir ao vivo a este momento", defende Pedro Félix..Para o restaurador, o disco Ensaios acaba assim por se tornar o "exemplo perfeito de património sonoro, por vezes tão ou mais importante do que a obra final. É preciso incutir nas pessoas esta noção de património sonoro, de que todos estes documentos são importantes e devem ser preservados". .A edição é complementada por um livro que traça a cronologia de 1970, ano em que Amália atuou um pouco por todo o mundo e também em Portugal. Além de diversas fotografias inéditas da artista, são também reproduzidas imagens dos cadernos manuscritos de Alain Oulman, com partituras e poemas experimentados nestes Ensaios. O livro inclui ainda notas explicativas sobre cada um dos fados, da autoria de Frederico Santiago.."Amália é uma artista maior do que o fado, com uma dimensão internacional única, da qual, muitas vezes, nem nos apercebemos. Era uma cantora única, uma brilhante autora de letras, e agora, nestes ensaios, também se revela uma exímia compositora. É mais uma dimensão que se acrescenta", sustenta Pedro Félix, para quem este trabalho representa "não só um reencontro", mas também "a descoberta de uma nova Amália".