Entramos na galeria de exposições temporárias do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa, e defrontamo-nos com Anunciação. É um quadro pequeno. Pouco mais de 30 centímetros de altura por 22 de largura. Mas esta obra do pintor português Alvaro Pirez d'Évora, realizada entre 1430 e 1434, é uma pequena maravilha. As cores vibrantes prendem-nos o olhar. Temos de nos aproximar para ver melhor os pormenores das asas do Arcanjo Gabriel e das roupas de Maria, os detalhes da cortina vermelha e dourada, uma pomba a esvoaçar e, num canto, a mão de Deus, que tudo comanda..Parte de um díptico e realizada, provavelmente, como obra de devoção privada, esta Anunciação data já da parte final da carreira de Alvaro Pirez, é uma obra da maturidade e uma das melhores do artista, diz o diretor do MNAA. "Está cá tudo. Estão o preciosismo, a delicadeza, o trabalho fantástico do ouro e das lacas, esta elegância que é muito própria do Pires e que muitas vezes a historiografia italiana lê como um certo exotismo, que podia vir da aprendizagem ou, pelo menos, de uma cultura que ele já levaria de Portugal, e que o afasta um bocadinho dos italianos, embora ele seja globalmente um pintor deste gótico final italiano", explica Joaquim Oliveira Caetano..A obra pertenceu à coleção da família de Heinz Kisters, na Suíça, e foi depois propriedade do chanceler alemão Konrad Adenauer (foi só nessa altura que foi atribuída a Pirez), cujos herdeiros a revenderam, após 1967, a Kisters. Foram os herdeiros deste que decidiram vendê-la através da Sotheby"s de Nova Iorque. Alertado para o anúncio do leilão pela direção do MNAA, o ministro da Cultura português disponibilizou 250 mil euros das verbas do Fundo de Fomento Cultural. A este valor viriam a ser acrescentadas as custas inerentes às comissões de venda, no valor de cerca de 90 mil euros, saídas das verbas da DGPC, num "esforço financeiro do Estado correspondeu a 90% dos valores envolvidos na aquisição", confirmou na altura Luís Filipe Castro Mendes. Para perfazer os restantes 10% da totalidade dos valores envolvidos na aquisição, os Amigos do Museu contribuíram com 25 mil euros e a direção do MNAA avançou com seis mil euros que tinham sobrado da campanha de angariação de fundos para a aquisição de Adoração dos Magos de Domingos Sequeira..O quadro foi comprado pelo Estado português em fevereiro de 2018 e apresentado pela primeira vez no MNAA em março desse ano. É a única obra de Pirez na coleção. "Esta obra veio colmatar uma lacuna óbvia", justifica Joaquim Caetano. "Agora já podemos contar a história [da pintura portuguesa] desde que é possível contá-la." Isto porque Alvaro Pirez d'Évora, nascido no final do século XIV, trabalhou a maior parte da sua vida em Itália mas é, para todos os efeitos, o primeiro pintor português que está documentado..A maior exposição de Alvaro Pirez."Quando se comprou Anunciação pensou-se logo que se devia fazer alguma coisa em volta do Alvaro Pirez d'Évora", explica Joaquim Caetano, que nessa altura não era ainda diretor do MNAA mas que conhece bem a obra de Pires. "Quando fui diretor do Museu de Évora conseguimos comprar o primeiro quadro de Pirez para um museu português, o que foi muito importante", recorda. Com Anunciação e todo o burburinho em volta da sua aquisição, esta seria uma boa oportunidade para mostrar a obra do português - de quem só se tinha visto uma exposição, mas com muito menos obras, na Torre do Tombo, em 1994.."Entendeu-se que havia aqui uma oportunidade de fazer uma exposição maior e também de fazer um ensaio sobre a sua obra. O Álvaro Pires é um pintor muito conhecido internacionalmente, mas os estudos sobre ele são pontuais", justifica Joaquim Caetano. "Portanto, esta era a ocasião para fazer uma reflexão sobre esta que é não só uma obra importante deste período na Toscana, mas que é o primeiro pintor português do qual conhecemos a obra.".Produzida em parceria com o Pollo Museale della Toscana e comissariada por Joaquim Oliveira Caetano e Lorenzo Sbaraglio, a exposição Álvaro Pires de Évora: Um Pintor Português em Itália nas Vésperas do Renascimento reúne cerca de 80 obras vindas de oito países e de quase 40 emprestadores. "Sobretudo de Itália, onde ele trabalhou, mas de outros países também, porque a sua obra está muito dispersa. Não foi possível, por motivos financeiros, trazer as obras do Pires que estão na América do Sul e do Norte (umas oito, pelo menos)", explica o diretor, sublinhando que a produção desta exposição custou "valores que raramente comportamos no MNAA"..Apesar desses constrangimentos, "está aqui mais de metade da obra conhecida de Álvaro Pires: temos 35 obras, das 60 que lhe estão atribuídas". E, além dele, estão também muitas obras de outros artistas seus contemporâneos, o que nos permite "fazer o percurso do relacionamento dele com outros artistas nas quatros cidades onde trabalhou e assim ficarmos com uma visão de conjunto"..Um português em Itália.Sabemos pouco sobre a vida de Álvaro Pires. Sabemos que é de Évora porque foi assim que ele assinou uma das suas obras mais importantes, a Virgem com o Menino e Anjos, da Igreja de Santa Croce de Fossabanda, em Pisa (que está em Lisboa). Mas não sabemos exatamente quando nasceu (provavelmente cerca de 1370/1380) nem por que motivo se mudou para a Itália ("na virada do século", diz-nos Joaquim Caetano)..Não há qualquer testemunho direto ou indireto da presença de Álvaro Pires em Portugal. Mas há um grupo de obras que ele assinou como Alvaro di Pietro di Portugallo. Alguns historiadores consideraram a hipótese de ele se identificar como "de Portugal" por estar há pouco tempo em Itália, mas essa hipótese foi entretanto afastada: "Se ele tivesse chegado a Itália a pintar assim teria de ter saído de Portugal já um pintor completamente formado", o que é improvável. "Por isso, referir que era português não quer dizer que tivesse acabado de chegar, mas é algo que o distingue. Outros artistas assinavam as suas obras com os locais de origem. Provavelmente isso dava-lhe algum tipo de prestígio ou um certo exotismo que ele considerava que podia ser relevante para arranjar mais trabalho", explica o diretor do MNAA..Outra hipótese que tem sido bem aceite é a de que Pires tivesse formação em ourives em Portugal antes de se mudar para Itália, o que explicaria a qualidade do seu trabalho com ouro nas pinturas. Nesta exposição podemos não só compreender a relação de Pires com outros artistas contemporâneos - nomeadamente Solaro Giovanni, Tadeo di Bartolo ou Gherardo di Jacopo (Starnina) - mas também perceber como a sua obra foi evoluindo à medida que ia contactando com diferentes pintores ou aperfeiçoando a sua técnica..A exposição, inaugurada em novembro, foi já visitada por mais de dez mil pessoas. Encerra dia 15 de março, "sem adiamentos", avisa o diretor. Anunciação vai ficar no museu, mas dificilmente teremos outra oportunidade para ver de forma tão completa a obra do primeiro pintor português.