All behind you, Volodymyr. O inesperado rosto do mundo livre

"É Charlie Chaplin transformado em Winston Churchill", resume um observador à revista Time. O ex-comediante ucraniano revelou-se em palco de guerra um líder carismático, que uniu o Ocidente contra Putin.
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Vídeos gravados em frente ao palácio presidencial, conferências de imprensa em pleno bunker, intervenções emotivas em videoconferências com líderes mundiais, frases fortes a ecoar pelo globo. Se é em tempos de guerra que se definem os líderes, Volodymyr Zelensky já ganhou o palco. O ex-comediante vestiu a farda militar e recorreu à sua melhor arma. Mais do que com a corajosa mas limitada (face ao poderio russo) resistência armada do seu Exército nas ruas, é com o poder da comunicação que o presidente ucraniano tem conseguido transformar-se num obstáculo para as ambições imperialistas de Vladimir Putin. A quem não hesita, sequer, confrontar diretamente: "Sente-se à mesa comigo. Mas não a mais de 30 metros de distância, como fez com (Emmanuel) Macron ou (Olaf) Scholz. Tem medo de quê? Sou um tipo normal, não mordo", desafiou Zelensky.

O presidente da Ucrânia tornou-se, por estes dias, no rosto mais popular do chamado "mundo livre" face à ameaça do mal, encarnado por um frio e distante Putin que não se coibiu sequer de agitar a bandeira nuclear ao fim de três dias de invasão. "Diante dos nossos olhos, ele veio assumir uma luta que a maioria dos estadistas ocidentais há muito se tinha esquecido de como lutar, aquela que às vezes é necessária para impedir que a tirania mate a democracia. Zelensky não reuniu o seu próprio povo apenas para defender a sua nação, inspirando-os a atirar coquetéis Molotov contra veículos militares russos e a impedir tanques, também galvanizou as democracias mundiais de formas que pareciam impensáveis apenas uma semana antes", escreve a revista norte-americana Time na sua última edição, cuja capa é dedicada à luta dos "heróis ucranianos" e contém a citação, em ucraniano, de uma frase proferida por Zelensky no seu discurso por videoconferência perante o Parlamento Europeu: "A vida vai ganhar sobre a morte e a luz vai ganhar sobre a escuridão."

Inexperiente, sem pedigree político e marcado por um passado de comediante que fazia erguer sobrancelhas quanto à seriedade da sua intervenção política, o presidente ucraniano viu a invasão russa colocá-lo perante o maior papel da sua vida. A forma como o assumiu desfez dúvidas: Zelensky é um líder nato. O líder que uniu toda a oposição ucraniana frente ao invasor russo. O líder que galvanizou todo o mundo ocidental para enfrentar um momento definidor na história. O líder que Putin decerto não esperava encontrar.

"É como se Charlie Chaplin se tivesse transformado em Winston Churchill", nota um observador citado pela Time, associando na figura do presidente ucraniano as características de duas figuras ímpares da primeira metade do século XX: Chaplin, o rei da comédia do cinema mudo, e Churchill, o primeiro-ministro britânico que assumiu a luta contra o nazismo de Hitler durante a II Guerra Mundial. A analogia, de resto, tem ganhado adeptos, ao mesmo tempo que Zelensky alerta para o alcance dos planos de Putin na expectativa de reforçar o apoio internacional. "Se a Ucrânia desaparecer, e que Deus nos proteja, Putin só parará em Berlim", avisou na conferência de imprensa improvisada num bunker, na quinta-feira.

"Zelensky trouxe à tona o seu Churchill interior", refere também Andrew Roberts, historiador e professor convidado do Departamento de Estudos da Guerra do King"s College, de Londres, citado pela AFP. Autor, em 2018, de uma biografia de Winston Churchill, o historiador britânico diz encontrar vários pontos em comum entre as duas figuras, desde a "incrível bravura pessoal" à "capacidade de se conectar com o povo" e à "sua crença intransigente na vitória final".

O filósofo francês Bernard-Henri Lévy elogiou-lhe "o humor, que não o abandona mesmo que chovam mísseis sobre ele", e disse que Zelensky o faz recordar outros lutadores pela liberdade que "aprenderam a fazer a guerra sem a amarem. Esse homem tornou-se o pesadelo de Putin", constatou.

A 14 de maio de 1940, o jornal britânico Evening Standard publicava um cartoon que se tornou um dos símbolos marcantes da II Guerra. "All behind you, Winston", de David Low, mostrava Churchill de mangas arregaçadas a liderar a Grã-Bretanha frente à ameaça nazi. Atrás dele, uma legião de figuras de todos os espetros políticos britânicos, também de mangas arregaçadas, prontos para a guerra.

Mais de 80 anos depois, "é assim que o mundo livre se sente em relação a Volodymyr Zelensky. Todos atrás de ti", lê-se noutra revista norte-americana, The Atlantic. Com a diferença de que hoje a Ucrânia está longe de ser o grande império britânico de 1940 e continua a lutar sozinha, no terreno, contra um inimigo muito mais poderoso. É como se Zelensky fosse uma espécie de Churchill por correspondência para o Ocidente, perante as reservas das grandes potências em envolver-se diretamente num conflito com a Rússia, sob pena de uma guerra nuclear mundial devastadora. Por isso a NATO tem-se recusado a fechar o espaço aéreo sobre a Ucrânia, o que já motivou a reprovação audível de Zelensky: "A partir de agora, todas as crianças que morrerem serão também culpa vossa."

A candidatura de Zelensky nas eleições presidenciais de 2019 surgiu quase como uma brincadeira. Volodymyr, que, apesar do curso de Direito, ganhou fama como comediante e artista - tendo ganho o Dancing With the Stars local e emprestado a voz à versão ucraniana do urso Paddington, por exemplo -, viu a sua popularidade disparar com uma série de TV na qual interpretava o papel de um professor desbocado que se tornou presidente após a divulgação de um vídeo em que se insurgia contra a corrupção na Ucrânia. O nome da sitcom, Servo do Povo, serviu-lhe para batizar o partido pelo qual haveria mesmo de concorrer às presidenciais, derrotando o presidente em exercício, Petro Poroshenko, na segunda volta, com mais de 70% dos votos.

Essas eleições mostraram a arte de Zelensky no uso das novas redes de comunicação e uma forma pouco tradicional de fazer campanha: não organizou comícios oficiais nem fez discursos políticos, a sua plataforma eram as redes sociais, e as mensagens eram sobretudo vídeos cómicos e satíricos compartilhados através do Twitter, Facebook ou YouTube. Em vez de entrar em debates, continuou em tournée com a sua companhia, Kvartal 95 (Distrito 95), que fundou com os amigos que o acompanham desde adolescente, em Kryvyi Rih, a cidade industrial do sudeste da Ucrânia, na região de Dnipropetrovsk, onde nasceu, em 1978. A maior parte desses amigos faz parte do seu núcleo próximo de conselheiros.

Filho de judeus, ele que agora é catalogado por Putin como líder de um "bando de neonazis", e neto de um comandante do Exército Vermelho soviético na II Guerra, Zelensky confiava em pôr fim ao prolongado conflito com os separatistas apoiados pela Rússia no leste do país, nas repúblicas de Donetsk e Luhansk, na região do Donbass. Mas viu-se ao mesmo tempo ignorado por Putin e chantageado por Trump, então o ocupante do poder na Casa Branca, que fez depender um prometido apoio ao reforço militar ucraniano de uma investigação ao filho de Joe Biden.

Internamente, depois de ter lançado vários projetos estruturantes, como uma reforma agrícola, uma campanha de digitalização e um plano de renovação das estradas do país, Zelensky tinha visto decair a sua popularidade na antecâmara desta invasão russa, com os problemas económicos a persistirem e alguns respingos de corrupção a continuarem a ensombrar a política ucraniana. Talvez por isso tenha sido visto como um político frágil e um alvo fácil para Putin.

No entanto, assim que as tropas russas entraram na Ucrânia, a 24 de fevereiro, Volodymyr Zelensky não mostrou qualquer medo cénico, encarnando numa espécie de falcão da política externa, que conquistou a simpatia do mundo ocidental com as mesmas qualidades que o levaram a conquistar o palácio presidencial de Kiev: uma comunicação emotiva, direta ao coração dos interlocutores, seja qual for a plataforma utilizada.

"Estamos todos aqui", assegurou um dia após o início da ofensiva, num vídeo do lado de fora do palácio presidencial, rodeado pelo núcleo próximo, para rebater as notícias de que havia fugido. "A luta está aqui. Eu preciso de munições, não de uma boleia", respondeu a uma alegada oferta de Joe Biden para ser retirado em segurança de Kiev, ele que, numa videoconferência com os líderes da União Europeia para pedir ajuda militar, se despediu de forma dramática: "Esta pode ser a última vez que me vejam com vida", reforçando a urgência na ação perante a ameaça russa.

Mesmo agora, obrigado a passar os dias entre bunkers e abrigos, continua a alimentar os seus canais de comunicação com mensagens que misturam declarações de resistência com apelos emotivos ao apoio internacional. "Lutaremos o quanto for necessário", reagiu quando o Kremlin intensificou os ataques. "Provem que estão connosco", implorou, deixando em lágrimas a intérprete, quando entrou por videoconferência numa reunião do Parlamento Europeu. "Provem que são realmente europeus, e então a vida vencerá a morte e a luz vencerá as trevas", reforçou, numa frase escolhida para a capa da revista Time. Ou mais recentemente: "Tenho de falar com Putin, porque é a única maneira de parar esta guerra. Sem rancor, como homens."

Volodymyr Zelensky abraçou o papel da sua vida e conseguiu unir não só os ucranianos como o próprio mundo ocidental, que se desmultiplicou em iniciativas nunca vistas até aqui para fazer face a Vladimir Putin. "All behind you, Volodymyr. De Washington, Londres, Paris, Berlim ou Bruxelas, é essa a mensagem que ecoa até Kiev. Até onde e até quando, ninguém arrisca dizer. O que não será arriscado dizer é que Zelensky se tornou atualmente num icónico herói do mundo livre. Aquele que Putin provavelmente não esperaria.

rui.frias@dn.pt

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