No alto da serra de Carnaxide, a terra ainda enlameada dá testemunho das chuvas da véspera. É para esta terra que aponta Eugénio Sequeira, engenheiro agrónomo e antigo presidente da Liga para a Proteção da Natureza: "Se impermeabilizarem os solos da serra, esta água que agora é retida vai concentrar-se lá em baixo em metade do tempo. O que é que isso significa? Cheias!"..Ao lado das terras revolvidas pelas máquinas ergue-se já uma parte de um condomínio - publicitado como "uma cidade às portas de Lisboa" - que terá 115 moradias e 255 apartamentos. Não é caso único: a lista de projetos de construção que foram sendo anunciados para a serra ao longo dos últimos anos é extensa e variada, de uma cidade desportiva a um centro hípico, de um parque aquático a uma exploração agropecuária..A crescente urbanização da serra, um dos poucos territórios da área da grande Lisboa que ainda não está ocupado por construção intensiva, levou à mobilização de um grupo de cidadãos que quer ver preservado aquele espaço natural, uma área com cerca de três quilómetros de comprimento por dois de largura, delimitada pela ribeira de Algés e pelo rio Jamor, e que se divide entre os concelhos da Amadora, Oeiras e Sintra. Do seu ponto mais alto abre-se uma magnífica vista sobre o estuário do Tejo, o Cristo Rei, o Vale do Jamor, o Monsanto. Para o lado norte, vê-se Queluz, lá atrás Sintra. Dois "pontos cardeais" para quem ver a serra de Carnaxide integrada num corredor verde, a meio caminho entre o Parque do Monsanto, em Lisboa, e a Serra de Sintra. São, aliás, duas evocações que vêm frequentemente à conversa.."Alguém se lembraria de construir um condomínio no alto do Monsanto? É o que estão a fazer na serra de Carnaxide. Faz algum sentido?", pergunta Daniel Martins, engenheiro informático que vive nas proximidades daquele território natural, primeiro subscritor de uma petição a defender a salvaguarda da serra, já entregue na Assembleia da República. O texto da petição sustenta que o avanço dos projetos imobiliários que estão previstos "iria destruir a serra, causando impactos significativos a curto, médio e longo prazo, tanto para as populações como para o ambiente", sublinhando o "imenso valor ambiental e socioeconómico, além de turístico e de lazer" desta mancha verde para as populações e para os municípios..Mas voltemos ao sopé da serra. Do alto dos seus 83 anos, Eugénio Sequeira vai apontando, caminho acima, as cúpulas das mães de água que se veem entre as copas dos pinheiros mansos e que em tempos integraram o sistema de abastecimento do Aqueduto das Águas Livres, que levava água a Lisboa. Uma prova da capacidade de retenção de água subterrânea destes solos de barro vermelho, que "retém muita água" e mais ainda quanto têm matéria orgânica. Uma característica que ganhará crescente importância com as alterações climáticas, argumenta o investigador, sublinhando que a subida do nível do mar e a descida do nível dos rios - portanto, a crescente salinização da água doce - vai criar um enorme problema futuro de acesso a água potável, nomeadamente em Lisboa..Estes são também "solos férteis" onde se produziram cereais durante séculos. "Isto era o celeiro de Lisboa", era "com estes cereais que se faziam as bolachas que os marinheiros levavam nos navios" nos Descobrimentos, conta Eugénio Sequeira. Por toda a serra ainda se veem, aliás, antigos moinhos. Ou melhor, escombros de antigos moinhos. "Estes perderam a guerra, nem Dom Quixote os salva", ironiza António Coimbra, outro membro do movimento..Citaçãocitacao"Neste momento o que estão a fazer todas as cidades europeias é remover o asfalto e construir parques urbanos, que não têm a mais valia que tem um território natural de per se".Recursos hídricos, riqueza dos solos, património arquitetónico, a preservação de um ecossistema rico em fauna e flora, ainda com muita vegetação autóctone - apesar dos eucaliptos, "um horror" que ali fizeram, nas palavras de Eugénio Sequeira - são alguns dos argumentos que o movimento invoca em defesa da preservação da serra. "Neste momento o que estão a fazer todas as cidades europeias é remover o asfalto e construir parques urbanos, que não têm a mais valia que tem um território natural de per se", sublinha Ana Estela Barbosa, investigadora e engenheira do Ambiente, lembrando que Portugal assumiu compromissos internacionais relativamente à mitigação e adaptação às alterações climáticas - com metas a cumprir já para este ano - que fundamentam a proteção de ecossistemas como o da serra de Carnaxide.."Diz-se às pessoas que temos que plantar árvores, fazem-se ações de plantação, dizem-nos que temos que ter estruturas verdes. É um óbvio contrassenso que se vá destruir algo que tem um valor incrível, um valor local, regional, e diria a mesmo a nível de todo o território. É um capital natural", prossegue a investigadora. Ana Estela Barbosa sublinha, aliás, que "dar importância a este capital natural está tão na ordem do dia que, inclusive, o recente documento da Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica [o documento definido pelo Governo a partir do plano elaborado pelo gestor António Costa Silva], refere a necessidade de promover a sustentabilidade e a proteção da biodiversidade, valorizando o capital natural "..Daniel Martins também defende que a crescente urbanização daquele espaço natural vai em contraciclo com os tempos atuais - "veja-se o exemplo da Praça de Espanha, o custo que tem fazer o retorno de um espaço daqueles para jardim" - e que este não é um problema de um ou dois municípios, mas uma questão de âmbito nacional. "Na área metropolitana de Lisboa vive quase um terço da população portuguesa", argumenta - "Isto não é uma questão de lazer, é uma questão de saúde"..O movimento, surgido em 2015 da iniciativa de um grupo de cidadãos que reúne pessoas que vivem em Carnaxide, e a que se foram juntando académicos e investigadores em ciências ambientais, quer que os municípios de Sintra, Amadora e Oeiras se sentem à mesma mesa e olhem para o futuro da serra de uma forma integrada, ao mesmo tempo que apelam à Assembleia da República e ao Governo (o movimento reuniu recentemente com o ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes) para que assuma a iniciativa de classificar aquele território, com vista à sua preservação. Iniciativas como a que foi anunciada pela Câmara de Oeiras em março deste ano (depois adiada devido à pandemia de covid-19), de plantação de 12 500 árvores na serra, não convencem os membros do movimento: "No final vamos ficar com jardinzinho central para dizerem que há espaços verdes", diz António Coimbra. O movimento também já pediu uma audição ao Presidente da República. Em 2018 o assunto já esteve no parlamento. O Bloco de Esquerda avançou então com um projeto de resolução que recomendava ao Governo a classificação da serra como "paisagem protegida integrada na rede nacional de áreas protegidas". A iniciativa foi chumbada por PS, PSD e CDS, com o voto favorável dos restantes partidos. Durante a discussão, socialistas, sociais-democratas e centristas argumentaram que esta é uma decisão que cabe ao Poder Local..Um dos cavalos de batalha do movimento passa também por chamar as populações para a defesa da serra, num contexto em que muita gente reage com surpresa: "Mas há uma serra em Carnaxide?!" [refira-se que, apesar de se chamar serra de Carnaxide, formalmente é uma colina, dado que tem uma altura de 211 metros]. Mesmo quem vive mais próximo, muitas vezes só conhece a serra a partir da estrada que atravessa uma das encostas, conta Jorge Marques, bancário reformado e membro do movimento, mas acrescentando que esta é uma situação que tem vindo a mudar nestes últimos meses de pandemia, com as pessoas a procurarem aquele espaço natural para passear em tempos de confinamento..Cerca de 157 hectares da serra de Carnaxide pertencem ao concelho de Oeiras, 33 dos quais de propriedade pública, adquiridos pela autarquia "ao longo de mais de 20 anos". Desde 1994 que está em vigor - e assim continua - um Plano de Urbanização que prevê a construção de um parque de campismo, um parque aquático, um hotel, um centro hípico, uma zona habitacional e uma exploração agropecuária. Na revisão do Plano Diretor Municipal (PDM) de 2015 esta área ficou classificada como "solo urbanizável", mas a autarquia garante que a longa lista de empreendimentos prevista no plano não vai avançar, com exceção da zona habitacional de moradias unifamiliares já construída numa encosta: "Estas construções encontram-se atualmente todas executadas, não se encontrando outros projetos em licenciamento"..Um outro empreendimento chegou a ser alvo de um protocolo entre o então presidente Paulo Vistas e o Sport Lisboa e Benfica. Foi apresentado em 2017 como um Centro de Alto Rendimento, um projeto orçado em 17 milhões de euros que previa a construção de uma pista de atletismo, uma pista de corrida coberta, uma piscina de 25 metros com oito pistas, um campo de râguebi, pavilhão desportivo, campo de futebol de onze, bancada coberta com 1500 lugares e silo de estacionamento com 540 lugares para automóveis. O clube encarnado firmou um protocolo com Paulo Vistas, que disse na altura que Oeiras doaria um terreno de cerca de nove hectares para o empreendimento. Isaltino Morais, o atual presidente, chegou a afirmar que não se oporia ao projeto. Mas, segundo disse agora a câmara ao DN a "Cidade Desportiva das Modalidades" não vai avançar. Referindo que se tratava apenas de um "programa" ainda sujeito a aprovação camarária, a autarquia de Oeiras diz que "a avaliação efetuada pelos serviços técnicos concluiu que não se revelava compatível com as disposições regulamentares do Plano do Parque Sub-Urbano da Serra de Carnaxide "..DestaquedestaqueCâmara de Oeiras diz querer "afetar grande parte da área da Serra de Carnaxide a um futuro parque urbano de referência na Área Metropolitana de Lisboa".E o mesmo destino parece ter um outro projeto, denominado Villa Cavallia, que chegou a ser apresentado publicamente : "O que foi aprovado foi um Pedido de Informação Prévia, em 2014, para a instalação de um centro hípico e unidade hoteleira de apoio. Esta intenção nunca teve desenvolvimento por parte dos promotores"..Referindo que "toda a dinâmica urbanística tem vindo a acontecer na vertente norte da serra" - "pertencente ao concelho da Amadora" - a autarquia de Oeiras diz querer "preservar os valores patrimoniais e paisagísticos" da serra e diz estar agora a iniciar os "estudos biofísicos e patrimoniais" para avançar com a "reavaliação do plano de urbanização atualmente existente", com o objetivo de"afetar grande parte da área da Serra de Carnaxide a um futuro parque urbano de referência na Área Metropolitana de Lisboa". Ainda sem data, dado que a câmara "precisará de obter os terrenos necessários à implementação desta infraestrutura verde". O DN questionou também a Câmara da Amadora sobre o que tem previsto para a serra de Carnaxide - há pelo menos mais um empreendimento imobiliário anunciado -, mas não obteve resposta.