Aldina Duarte: "Nos tempos que correm, o fado é uma arte muito radical"
A celebrar 25 anos de carreira, Aldina Duarte lançou no final do ano passado um disco de homenagem ao fado, composto por 12 temas clássicos, que a fadista recria e de certa forma desconstrói, com interpretações tão pessoais quanto improváveis. Chama-se Roubados, um termo famoso na gíria fadista, e resume na perfeição o desafio que representou para a própria Aldina Duarte, habituada a cantar a suas próprias palavras sobre "o chão musical" do fado tradicional, interpretar as palavras imortalizadas por alguns dos fadistas mais importantes da história do fado - Beatriz da Conceição, Lucília do Carmo, Carlos do Carmo, Tony de Matos, Hermínia Silva, Maria da Fé ou Celeste Rodrigues, entre outros.
Aldina Duarte despertou tarde para o fado, como recorda nesta entrevista ao DN, mas desde que tropeçou nele, "quase por acaso", nunca mais se largaram. O primeiro disco em nome próprio, Apenas o Amor, surgiu em 2004, quando já tinha 37 anos e um percurso já feito nas casas de fado, que ainda hoje são o seu habitat natural. É a elas que dedica este último disco, que agora apresenta na discoteca Lux Frágil, em Lisboa, por uma noite transformada numa casa de fados, ao som da voz única de Aldina Duarte.
Como é que se transpõe o ambiente de uma casa de fados para um espaço como o Lux Frágil?
Não é bem isso que vai acontecer, mas podia ser. Por acaso, quando comecei a dar concertos fora das casas de fado tive uma ajuda preciosa por parte do Jorge Silva Melo, no sentido de descobrir uma forma de transpor o meu fado para o palco de um grande auditório. Quem nos fez o desafio, na altura, foi o Miguel Lobo Antunes, que era então diretor da Culturgest. Essa sempre foi a minha grande preocupação: como é que se leva este repertório para cima de um grande palco sem o desvirtuar? No fundo, sem o corromper naquilo que considero essencial no fado, que tem que ver com o intimismo, o peso da palavra e valor da poesia.
E o Lux permite isso tudo?
Este convite do Lux surgiu na altura certa. Na verdade, já tinha havido algumas abordagens para cantar lá, mas sempre achei que devido ao repertório, digamos. Mais frágil, dos discos anteriores, eu própria ainda não estava preparada para um concerto assim, em que não sabia muito bem ao que ia. Hoje em dia, pelo contrário, sinto que já não corro risco nenhum, até porque já tenho um público que sabe ao que vai. E o próprio Lux também tem aberto as portas a muitos outros géneros musicais, neste mês até iniciou uma programação de música clássica, o que significa que os lugares também vão ganhando a sua própria alma. Por exemplo, não gosto nada de dar concertos ao ar livre, mas quando atuo no festival ao Largo, em São Carlos, não arrisco nada, devido ao espaço, à variedade das propostas musicais e do próprio público, que está preparado para me ouvir. E o Lux, nesta altura, também já se tornou um espaço assim em Lisboa e agrada-me sobretudo cantar num local onde nunca o fiz, com um repertório que não é assim tão arriscado, pois é baseado num disco feito de temas clássicos que, eles próprios, já têm um lastro enorme.
E fazer este disco, com versões de temas tão conhecidos e importantes para a história do fado, pode ser considerado um risco?
Com o meu percurso, sem dúvida, exatamente porque arrisquei fazer versões, descolando-me completamente dos originais. O risco era o de estragar esses temas, apesar de estes sobressaírem por si próprios, é essa a vantagem dos clássicos.
Mas é isso que torna este disco um pouco incomum, em termos do fado, ter feito versões bastante diferentes destes clássicos. Normalmente, as pessoas cantam-nos como eles são, sem se apropriarem deles.
De facto, não é muito comum, não, até porque muitas vezes as pessoas cantam os clássicos porque ainda não têm repertório próprio. E eu nunca quis fazer esse percurso. Esperei dez anos para gravar o primeiro disco exatamente porque queria ter um estilo e um repertório próprio. Sempre quis cantar apenas fado tradicional e apenas acompanhada por uma viola e uma guitarra, para criar a minha sonoridade. Portanto, este disco surge um bocadinho ao contrário, pois faço-o quando já tenho uma carreira consolidada e uma personalidade artística bastante vincada. Para o bem e para o mal, Aldina Duarte só há uma, portanto achei que já me podia atrever a fazê-lo. São temas tão bons, cantados pelos maiores mestres do fado, que querer competir com isso seria apenas um disparate, portanto limitei-me apenas a tentar colocar algo de meu neles.
Em que sentido?
Na visão e na interpretação que lhes dou, que são só minhas. Há ali algumas interpretações que são mesmo muito distintas dos originais. Para já, é um disco construído em estúdio, que é algo que nunca tinha feito antes, todos os meus trabalhos anteriores são construídos ao vivo e só depois os gravo. Mas, pela natureza do repertório, achei interessante fazer ao contrário e cantá-los só no estúdio, porque nunca antes os tinha cantado ao vivo, apesar de sempre os ter ouvido, cantados pelas mais variadas pessoas: homens, mulheres, jovens, velhos e, nalguns casos, até os ouvi mesmo interpretados pelos cantores originais. Era um repertório que se adequava a este exercício, até porque as melodias foram já feitas a pensar nestas palavras, ao contrário do fado tradicional, em que a história que queremos contar tem de ser encaixada num chão musical já preexistente e isso muda tudo. Aqui foi exatamente o método inverso e isso foi muito interessante.
Será um método a repetir no futuro?
Não sei, mas não me parece. Gostei muito de o fazer e ainda estou na fase da paixão, completamente enamorada por estes temas, dos quais tinha apenas uma memória auditiva deles e agora passei também a ter uma memória interpretativa. Isso é muito surpreendente até para mim, há ali zonas da minha voz que eu não conhecia, porque as melodias me levaram para ali. Nalguns destes temas, a música é mais importante do que a letra e eu tentei sempre colocar as palavras ao nível da melodia. Há temas em que a música é melhor do que a letra e outros em que se passa o contrário e o meu trabalho passa por equipará-las, porque é precisamente daí que eu venho. No fado tradicional, eu escolho sempre uma letra que esteja ao nível da música, mas aqui não pude fazer essa escolha, tenho de fazer esse trabalho ao nível da interpretação. Não sei se vou repeti-lo no futuro, até porque não gosto de me colocar amarras, mas creio que não, acho que vou continuar na casa de fados, como até aqui, a trabalhar com a minha matéria habitual. Eu nunca canto estes temas na casa de fados.
Mas, curiosamente, este disco acaba por funcionar como uma homenagem a essas mesmas casas de fado onde sempre cantou. Concorda?
Sem dúvida, porque estes temas são os verdadeiros sucessos das casas de fados, são a cartilha dos novos fadistas. E as casas de fado são o meu território, são o caminho que escolhi e no qual sempre permaneci, muitas vezes em detrimento dos grandes palcos, porque desde muito cedo percebi que não gostava de fazer digressões longas, de estar muito tempo longe de Portugal. Preciso de estar perto do som da língua, das minhas rotinas e dos meus afetos. E por causa disso tive de criar um caminho próprio, o que é sempre um risco, mas não acredito na vida artística sem risco.
Já utilizou várias vezes os verbos arriscar e atrever, que são bastante usuais quando se fala de fado, uma arte muito antiga e tida como algo purista. Concorda?
Nem por isso, nem nunca o foi, isso é um preconceito. Mas, de facto, como é uma arte tão antiga e com uma longa tradição, às vezes é entendida assim. A verdade é que quem é fadista não o é por obrigação, mas sim por amor e por isso tem uma necessidade muito grande de preservar esse património, mas também de o merecer, porque sabemos que estamos a mexer em algo muito maior do que nós. O fado tem uma história muito antiga e muito específica e isso não se pode ignorar. E é muito difícil corrompê-lo, porque o fado é hoje, musicalmente, uma das artes mais radicais, que vive apenas de dois instrumentos e de uma voz a cantar a poesia. Em tempos tão descartáveis, em que tudo é tão fugaz, acho incrível uma arte que resiste e se impõe assim.
Porque é que começou a cantar fado?
Porque ouvi a Beatriz da Conceição a cantar numa casa de fados. Já era adulta, tinha uma bagagem musical completamente diferente, mas naquele momento tive a sensação de ter assistido a algo único, como se tivesse visto uma Billie Holiday ou uma Nina Simone à minha frente. Nesse momento, eu percebi que a minha vida não ia ficar igual. Passei o ano seguinte a ouvir fado de forma quase compulsiva, porque achava incrível aquela arte existir aqui e eu não saber quase nada dela. Por sugestão da Beatriz da Conceição, fiz uma fonoteca incrível e, quando dei por ela, estava casada com o Camané, que também era fadista [risos] e a minha vida mudou radicalmente. Passado algum tempo, comecei a organizar com o Camané as noites de fado do Teatro da Comuna e depois eu própria fui convidada para ingressar numa casa de fados. Fui inicialmente para o Clube de Fados e depois para o Sr. Vinho, onde permaneço.
E quando é que se sentiu pela primeira vez fadista?
Na altura, não tinha noção disso, mas hoje, com tudo o que já vivi, acho que me senti fadista desde esse primeiro dia em que ouvi a Beatriz da Conceição a cantar. Senti-me primeiro fadista a ouvir do que a cantar, que era uma hipótese que nem sequer colocava na altura. Ainda hoje não sei se gosto mais de ouvir ou de cantar o fado, não concebo uma coisa sem a outra. O fado é uma arte de tradição oral, que só se aprende ouvindo. Fazendo e ouvindo...
Foi fácil escolher os temas para este disco?
Por acaso, até foi, porque tive um critério bastante simples, que passou por selecionar clássicos aos quais pudesse dar uma nova interpretação e, numa segunda fase, juntar os mestres que mais ouvi e com quem mais aprendi ao longo dos anos, quer ao vivo quer em disco. O João Ferreira Rosa, a Beatriz da Conceição, a Maria da Fé ou o Carlos do Carmo, por exemplo, ouvi-os várias vezes ao vivo.
Uma das versões mais interessantes é a da Rosa Enjeitada, a faixa que encerra o disco, em dueto com o António Zambujo, em que há ali uma desconstrução total...
É verdade, dou-lhe uma volta completa. A Rosa Enjeitada é uma personagem criada para uma revista dos anos 30. Era prostituta e tinha sido abandonada pelos pais, a dada altura apaixonou-se por um homem, com quem pensou vir a casar-se e foi novamente abandonada, porque ele não podia ficar com uma prostituta. É uma história da desgraçadinha à moda antiga, mas que, infelizmente, não está assim tão longe de nós como às vezes julgamos. E nesse sentido quis dar voz a quem não a tem, a uma mulher que até hoje sempre foi tratada de uma forma algo paternalista e sempre como vítima de um qualquer fatalismo. Eu própria tinha sentimentos muito contraditórios com esta música. Tem uma melodia extraordinária, mas não gosto nada da segunda parte do refrão, até a acho mal construída. E a dada altura pensei arriscar tudo aqui, dando voz a esta mulher, que por ter uma vida tão sofrida ainda mais respeito nos merece. Há uma questão feminina, que é um tema a que sou sensível.
E isso não acontece no original?
Há aqui um lado contraditório que me agrada e é por isso que os clássicos são tão importantes. Se pensarmos bem, mesmo com toda aquela visão machista e paternalista, foi dada uma voz a esta mulher, que chegou até nós, através deste fado, e isso agrada-me. Ou seja, seria muito pior se nunca houvesse um fado em que a personagem central fosse uma prostituta. Não gosto da visão, mas deram-lhe voz.
E porquê o dueto?
Porque pretendi que ela fosse vista pelo homem que a abandonou apenas como uma mulher. E fui buscar o António Zambujo, por ser alguém que também veio do fado, mas teve a coragem de o largar para fazer uma música só dele. Era a pessoa certa para fazer este dueto.
Vai apenas cantar o disco neste concerto ou vai também incluir outros temas do seu repertório?
Vou fazer o que faço habitualmente, que é criar um guião a partir do Roubados e incluir mais alguns temas meus que podem acrescentar algo a essa história. Vou até cantar alguns que nunca gravei e canto habitualmente na casa de fados. Tenho muitos inéditos que nunca gravei e só canto ao vivo. Este concerto vai ser como uma breve biografia minha, destes 25 anos de carreira que já levo.
Lux Frágil, Lisboa.
30 de janeiro, quinta-feira, 23.00.
15 €