Madeira. Ajuda tardia mas valiosa

A tragédia é inegável, mas ainda podia ter sido pior. Tem valido o empenho de todos. Nos momentos mais críticos, em cada pessoa estava um bombeiro. A ajuda nacional chegou tarde, mas foi preciosa
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Depois de mais de 40 horas de trabalho intenso, os bombeiros madeirenses receberam ontem uma importante ajuda dos mais de cem profissionais que vieram do continente e dos Açores. O reforço chegou tarde, como afirmam os que perderam bens ou viram as vidas em risco, mas foi importante e veio bem a tempo de ajudar a evitar perdas ainda maiores. Por isso foi tão apreciada a ajuda que deram. "Já deviam ter vindo mais cedo", insistia um morador em São Gonçalo.

Ao terceiro dia, as chamas continuaram a consumir grande parte da mancha verde que cobria o Funchal. O fogo que começou no recôndito sítio da Cova, em São Roque, chegou ontem de manhã à Travessa da Cova, em São Gonçalo. "Vivo aqui há mais de 50 anos e nunca vi nada assim", disse António Ferreira.

Depois de devastar um eucaliptal na encosta de São João de Latrão, abaixo do estádio do Nacional, temia-se o pior. A localidade foi evacuada, voltaram a ouvir-se gritos e o pânico instalou-se. Mas o vento deu tréguas durante alguns minutos, o tempo suficiente para bombeiros e populares molharem casas e retirarem material inflamável. Mais de trinta botijas de gás foram carregadas para local mais seguro e pouco depois as chamas foram aparentemente dominadas pelos bombeiros no local que, à hora do almoço, era o mais crítico, conforme reconheceu Luís Nery, do Serviço de Proteção Civil. Mais tarde, porém, houve reacendimentos.

Depois das horas de terror no centro do Funchal, na noite de terça para quarta, ontem de manhã o fogo voltou a subir a encosta. Subiu tanto que chegou às zonas altas de São Gonçalo e de Santa Maria Maior e atingiu o Jardim Botânico, o Parque Ecológico do Funchal e o Chão da Lagoa. Também a ligação ao Santo da Serra foi fustigada e houve lume nas zonas altas do Caniço.

O vento, sempre o vento, foi o transporte perfeito para faúlhas incandescentes que foram caindo entre moradias, sobre carros e em locais ermos e assim alastrou um fogo como não há memória.

Tal como no primeiro dia, ao terceiro surgem duas críticas comuns: há muitos terrenos por cuidar e falta de homens para o combate aos incêndios. A juntar a esses reparos, ontem, na Travessa do Transval, havia críticas duras à falta de água. Grande parte das famílias que habitam aquele local sentiram necessidade de sair de casa pela madrugada, mas de manhã as chamas estavam praticamente extintas, à exceção de um pequeno reacendimento e de um contentor sobreaquecido e cheio de materiais de construção. Os bombeiros atuaram com insistência, apesar das críticas pela sua ausência na noite anterior. Nas poucas horas em que esteve ativo, o fogo consumiu mato, esteve entre várias casas e queimou animais que não foram libertados a tempo. Também um parque aberto onde estavam seis viaturas foi totalmente destruído.

"Esse terreno é uma vergonha", disse uma moradora sem se identificar. O protesto foi repetido por quem estava próximo. "Homens precisam-se", sugeria uma mulher que ajudava outras três a distribuir baldes para apagar uma fumarola insistente.

Essa entreajuda seria mais tarde saudada pelo presidente da Junta de São Gonçalo. Bruno Ferreira mandou distribuir água e alimentos e elogiou a intervenção dos bombeiros e dos elementos das várias forças de segurança e a solidariedade nacional. "Parece que salvámos a situação", disse. Mas o fogo voltaria horas depois, mais abaixo.

Tal como segunda, tal como terça, quarta-feira também foi dia de sirenes, de bombeiros, de ambulâncias, polícias e voluntários. Foi também dia de começar a fazer contas aos prejuízos e ver com maior clareza o efeito devastador do incêndio que transformou o Funchal num inferno de alto a baixo. A paisagem está diferente, a cidade está diferente.

Espírito de ajuda bem visível

Elementos do INEM carregam uma botija de gás às costas, uma agente da GNR recolhe um pequeno cão desorientado, um agente da PSP ajuda pessoas a sair de casa, uma jovem voluntária da Cruz Vermelha recebe um bebé, em plena madrugada, para uma primeira observação, bombeiros que salvaram casas de desconhecidos e perdem as de familiares seus e até um grupo de amigos que ajuda o que mais precisa deles. Comerciantes que oferecem bens, gente anónima que se chega à frente e dá o que tem. Abraços e palavras de incentivo. Coragem, dizem uns aos outros.

Têm sido assim estes dias de inferno no Funchal. O espírito de entreajuda chega a todos. Até aos guardas-prisionais, aos polícias florestais. Até aos jornalistas. À frente do fogo, toda a gente ajuda toda a gente. Não se conhece o nome, não se sabe quem é, mas sabe-se que corre perigo. E isso tem bastado para a ajuda que merece ser destacada.

Mesmo sabendo que nem todos têm conhecimentos técnicos e que muitos se aventuram perante o perigo, tem valido este envolvimento coletivo e o respeito pelas ordens de quem sabe e dos agentes da autoridade. E até mesmo os casos de alguma intolerância e nervosismo a que assistimos, acabaram em sinceros pedidos de desculpa. A solidariedade ainda existe. E está viva.

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