Ainda e sempre o ator enraivecido
Ainda sem data de estreia marcada, o filme The Irishman já é um dos acontecimentos mais aguardados de 2019 no universo do cinema. A história ajuda, trazendo de novo às salas o mafioso sindicalista Jimmy Hoffa, desaparecido e presumivelmente assassinado em 1975, crime "confessado" - mas nunca provado - por Frank "The Irishman" Sheeran. A realização é de Martin Scorsese, de regresso depois de Silêncio. No elenco há velhos parceiros do realizador de O Aviador, como Harvey Keitel e Joe Pesci. Junta-se-lhes Al Pacino (no papel de Hoffa), num primeiro encontro com o cineasta. Mais do que tudo e todos, vale a presença de Robert De Niro (como Sheeran), que assim concretiza o indisfarçado sonho de voltar a rodar com o homem com quem partilhou alguns dos seus momentos de glória, desde Os Cavaleiros do Asfalto (1973), e com quem não trabalhava há quase duas dúzias de anos, mais rigorosamente desde Casino (1995).
Este será o nono filme para a dupla, depois de falhadas as hipóteses de A Última Tentação de Cristo (que o ator declinou por desconforto no desempenho do papel de Jesus Cristo, que foi para Willem Dafoe), de Gangues de Nova Iorque (em que De Niro foi rendido por Daniel Day-Lewis por não querer passar meio ano na Europa, em filmagens) e de The Departed - Entre Inimigos (que rendeu aquele que será presumivelmente o último grande papel a Jack Nicholson, chamado porque De Niro estava ocupado a realizar O Bom Pastor). Ainda assim, os ganhos ultrapassam infinitamente as perdas: às mãos de Scorsese, Robert, o homem que chegou a ser conhecido na adolescência como "Bobby Milk", por causa da palidez e da magreza, foi, entre outros, o perturbado Travis Bickle em Taxi Driver, o esmagador Jake La Motta em O Touro Enraivecido, o desmedido Robert Pupkin em O Rei da Comédia, o calculista James Conway em Tudo Bons Rapazes e o vingativo Max Cady no remake de O Cabo do Medo. Os percursos de um e outro, realizador e ator, estão longe de ficar por aqui, mas parece inegável a tendência de conseguirem extrair o melhor um do outro.
Foi com Scorsese que De Niro chegou ao seu segundo Óscar, na pele de um pugilista, que o obrigou a um treino físico duríssimo e a engordar desmedidamente para o momento em que a figura de Jake La Motta já envelheceu. Antes disso, em O Padrinho: Parte II, chegara a primeira estatueta - como ator secundário - pela mesma personagem, em diferentes idades, que antes rendera um Óscar a Marlon Brando, Vito Corleone. É muito por causa dos filmes com Scorsese que De Niro mantém acesa uma discussão que se eterniza sobre o melhor ator da sua geração, em rivalidade com Al Pacino. Em The Irishman vão cruzar-se pela quarta vez, depois dessa primeira sequela de O Padrinho (em que não contracenam, por se localizarem em épocas distintas), de Heat - Cidade Sob Pressão (de Michael Mann) e de A Dupla Face da Lei (de Jon Avnet). Se não vale a pena ferir suscetibilidades aos clubes de fãs de ambos, justifica-se ouvir De Niro: "Em muitas ocasiões, tentaram atirar-nos um contra o outro. Comparam-nos muito e eu não percebo bem porquê. Eu sou notoriamente mais alto, mais talhado para os papéis principais. Honestamente, ele pode ser o mais brilhante ator da nossa geração - se excetuarmos o meu caso..." Convirá dizer que isto foi diante de Pacino, com o clássico e irónico sorriso de De Niro...
Robert De Niro é filho, único, de dois artistas plásticos, Robert De Niro Sr. e Virginia Admiral. Os pais separam-se quando ele tinha 2 anos, ficando Bobby com a mãe, mas frequentando sempre que queria a casa do pai, que optou por ficar a viver em Nova Iorque. Essa circunstância foi, segundo o seu biógrafo, John Baxter, autor de De Niro: A Biography, aumentar o seu raio de observação além da sua zona, natural e de conforto, Greenwich Village. Introvertido, quase solitário, o futuro ator aproveitou para "estudar" os tipos clássicos com que se ia cruzando nas ruas, nomeadamente os mafiosos. Ao mesmo tempo, desenvolveu uma inquebrantável paixão pela cidade, tema do primeiro filme que realizou, Um Bairro em Nova Iorque (A Bronx Tale, de 1993). Ainda hoje, diz que quando visita Londres, Paris ou Roma conclui que nada se compara a Nova Iorque. E mais: que só vai a Los Angeles - e, por consequência, a Hollywood - se for "pago para isso". Reza a lenda que se estreou em palco numa versão escolar de O Feiticeiro de Oz, no papel do timorato leão - tinha 10 anos. Aos 17, foi com um amigo ver o filme Can Can, de Walter Lang, com Frank Sinatra e com canções de Cole Porter. Durante a projeção, tomou a decisão de uma vida, que comunicou ao parceiro de ocasião: ia dedicar-se à representação. À primeira, não terá sido levado a sério. Semanas depois, tinha largado a escola clássica, que nunca o interessou verdadeiramente, e estava inscrito na academia de Stella Adler.
As suas primeiras duas presenças em filmes, ambos realizados pelo francês Marcel Carné, não estão sequer creditadas. Trabalhou, por três vezes, com Brian De Palma, em fitas sem méritos particulares; muito mais tarde, "retribuiria" ao realizador com o inesquecível Al Capone de Os Intocáveis (1987). No mesmo ano em que inicia a ligação a Scorsese, 1973, participa em Toca O Tambor Devagar, de John D. Hancock. Logo a seguir, chega o Óscar, quando desenha o retrato de Vito Corleone enquanto jovem. Inesquecível é o ano de 1976: além de Taxi Driver, é chamado por Bernardo Bertolucci, para o épico 1900, e pelo veterano Elia Kazan, para O Grande Magnate, a partir de uma história de Scott Fitzgerald.
Os dados estão lançados: daí em diante, deixa a sua marca em filmes de Michael Cimino (O Caçador), Sergio Leone (o inesquecível Era Uma Vez na América), Terry Gilliam (Brazil: O Outro Lado do Sonho), Roland Joffé (A Missão), Neil Jordan (Ninguém É Santo, uma das primeiras comédias declaradas que aceita), Penny Marshall (Despertares), Kenneth Branagh (Frankenstein de Mary Shelley), Quentin Tarantino (Jackie Brown) ou Alfonso Cuarón (Grandes Esperanças), entre muitos outros. Percebe-se que, como acontecera com Paul Newman, evita os filmes de época. Mas, afinal, o que traz De Niro ao cinema? Além da voz, que dispensa efeitos para ser cortante, a capacidade de explosão repentina a quebrar por completo a ideia de contenção, a frase lapidar - a célebre "Are you talkin' to me?", de Taxi Driver, não estava sequer no guião... E diz isto: "Não há nada pior do que denunciar ou exagerar. Na vida real, as pessoas não tendem a exibir os sentimentos, mas a escondê-los."
Nos últimos anos, tem surgido mais em comédias, porventura cansado da ação, dura, que se lhe colou como bandeira. Repetiu, até, as personagens de Paul Vitti, um mafioso deprimido que se torna dependente do psicanalista (Billy Crystal), e Jack Byrnes, um ex-agente da CIA, superprotetor do seu clã familiar e com tendência para se tornar ameaçador para o genro (Ben Stiller). Em discurso direto: "Há quem diga que o drama é fácil e a comédia difícil. Não é verdade - e eu tenho feito mais comédias, agora. Quando se faz um drama, pode passar-se um dia inteiro a martelar alguém até à morte ou a ter de morder a cara a outra pessoa. Na comédia, pelo contrário, chega-se ali, grita-se com o Billy Crystal durante uma hora e ala para casa."
Entre as "cicatrizes" mais profundas de De Niro estará a "saída do armário" do pai, que - consumada a separação - assumiu abertamente a sua homossexualidade. Curiosamente, olhando a filmografia do ator, a questão nunca andou demasiado por perto, se excetuarmos Sleepers - Sentimento de Revolta (em que De Niro observa à distância a vingança de um grupo de homens que, na adolescência, foram torturados e sodomizados num reformatório), O Destino de Um Ex-Combatente (em que ele é um veterano de guerra, inicialmente homofóbico mas que se vai afeiçoando a um homossexual, entregue ao genial Philip Seymour Hoffman) e, de forma caricatural, no seu pequeno papel em Stardust - O Mistério da Estrela Cadente (em que comanda um navio "alado"). Na vida real, vai no segundo casamento, apesar de momentos muito conturbados que chegaram a passar pelo início do processo de divórcio, depois retirado. A eleita é a atriz Grace Hightower (62 anos), de quem tem dois filhos, um deles autista. A primeira mulher, Diahnne Abbott (73 anos), igualmente atriz, teve também um rapaz com De Niro, que perfilhou ainda uma menina, fruto da anterior ligação de Diahnne. Entre as duas manteve um longo romance com a antiga modelo Toukie Smith (63 anos), que acrescentou dois gémeos à lista dos rebentos de De Niro.
Homem de negócios, sobretudo com interesses na hotelaria e na restauração, faz questão de garantir que, comparativamente, os seus maiores interesses estão mesmo no cinema: além de registar 35 intervenções como produtor, atividade que estende à televisão, chamou a si a organização de um festival de cinema em TriBeCa (Triangle Below Canal Street), uma área da Lower Manhattan. Começou-o em 2002, numa declarada tentativa de revitalizar a zona, quase sem vida cultural e social depois do ataque às Torres Gémeas, em setembro de 2001. Não pode ainda ignorar-se o Homo politicus: tradicional apoiante dos democratas, juntou-se aos que combateram a ameaça de destituição contra Bill Clinton, fez campanha por Barack Obama e, nas últimas presidenciais, por Hillary Clinton. Há pouco mais de dois meses, antes de chamar ao palco Bruce Springsteen, na cerimónia dos prémios Tony, subiu ao cume das suas intervenções contra Donald Trump, que já apelidara de louco e imbecil. Nessa ocasião, foi mais explícito, usando a expressão que, tanto em inglês como em português, começa com a letra "f". Sempre, sempre que sente que é preciso, continua o touro enraivecido que conhecemos dos filmes. E, vale a aposta, já não muda.