É conhecida a estória da borboleta que tremeu as asas em Pequim e imediatamente provocou um tremor de terra em Washington, seguido de um tsunami nas Américas, seguido de uma imensa vaga populista nos Estados Unidos que acabou resultando na eleição de Trump para presidente..Ora em Cabo Verde aconteceu algo muito parecido e que todos classificam como sendo uma catástrofe, porém de proporções para nós outros, se não maiores, pelo menos muito mais gravosas do que a eleição de Donald Trump. E é o facto de, desde o mês de setembro passado, não haver água tónica no mercado. É verdade! Desde setembro que só a uns poucos é dado degustar o sacramental gin tónico de sábado ao meio-dia..Por causa dessa grave falha, estamos vivendo num permanente estado de ansiedade, com notícias desencontradas chegando todos os dias dos lados mais diferentes: finalmente chegou o navio que traz a água tónica; a mesma foi logo desembaraçada pela Alfândega e já está sobre o cais; paletes e mais paletes foram vistas a dar entrada em armazéns de comerciantes, agora só falta definir os preços, mas é seguro que no próximo sábado já se poderá beber um gin tranquilo, acaba-se de vez com esses sucedâneos com que as pessoas começaram a se enganar, como, por exemplo, vodca com sumo de laranja, ou Coca-Cola com gin cru, ou grogue com gelo e limão... Mas sábado sai sábado entra, e é a mesma desilusão, afinal o que parecia ser água tónica não passou de uma miragem, tal qual no deserto a gente com sede vê lençóis de água espalhados no horizonte..E porquê essa desesperadora crise? Que aconteceu de tão grave no mundo para virmos a ser vítimas da ausência desse algo que era tão corriqueiro na nossa sociedade que nem dávamos pela sua presença? Sim, o gin tónico é uma herança do tempo dos ingleses. O hábito british era tão comum em Mindelo, que muitos cujo salário não comportava as despesas domésticas mais o gin tónico limitavam-se aos sábados a vestir-se de ponto em branco, camisa, calções e meias até ao joelho, e sentarem-se na sala saboreando um grogue de Santo Antão como se fosse a apreciada mas cara bebida inglesa. E de tal forma o gin tónico entrou nos hábitos mindelenses que, certa vez, nos idos de antigamente, uma equipa de futebol foi a Praia jogar, e o que levou como grande novidade foi exatamente o gin tónico inglês, assim uma espécie de uma mensagem de neutralidade onde as rivalidades bairristas das duas cidades poderiam por algum tempo ficar de fora..E talvez por causa desse nobre gesto, o gin tónico acabou disseminado pelo país todo, tornando-se assim uma espécie de bebida social da classe média, do mesmo modo que o grogue continuou sendo a bebida nacional dos proletários e desempregados..Mas eis que num qualquer sábado se descobre que a água tónica esgotou-se completamente. Gin há muito. Além do tradicional Gordon, muitas outras marcas novas em garrafas bonitas invadiram as lojas. Mas tónico que é bom, nada. A consternação é palpável e pedem-se cabeças para rolar, alguém tem de ser responsabilizado por essa falha, um comerciante que se preze tem direitos mas também tem deveres, o jus utendi, fruendi et abutendi já é passado histórico, o próprio governo devia intervir através da Agência de Regulação Económica, punir com multa severa esse verdadeiro desleixo, para que não volte a acontecer segunda vez... Mas não, a culpa não é nacional, os culpados são os estivadores portugueses que resolveram entrar em greve prolongada sem primeiro acautelar os interesses dos irmãos cabo-verdianos....Que fazer? Resultaria um protesto junto do governo português? Com essa nova mania de que o Estado não deve intervir em zonas ditas privadas, o mais certo seria dizer-nos que não podem fazer nada. Aguentemos, pois, com paciência mais essa dependência do exterior..Escritor cabo-verdiano, Prémio Camões 2018
É conhecida a estória da borboleta que tremeu as asas em Pequim e imediatamente provocou um tremor de terra em Washington, seguido de um tsunami nas Américas, seguido de uma imensa vaga populista nos Estados Unidos que acabou resultando na eleição de Trump para presidente..Ora em Cabo Verde aconteceu algo muito parecido e que todos classificam como sendo uma catástrofe, porém de proporções para nós outros, se não maiores, pelo menos muito mais gravosas do que a eleição de Donald Trump. E é o facto de, desde o mês de setembro passado, não haver água tónica no mercado. É verdade! Desde setembro que só a uns poucos é dado degustar o sacramental gin tónico de sábado ao meio-dia..Por causa dessa grave falha, estamos vivendo num permanente estado de ansiedade, com notícias desencontradas chegando todos os dias dos lados mais diferentes: finalmente chegou o navio que traz a água tónica; a mesma foi logo desembaraçada pela Alfândega e já está sobre o cais; paletes e mais paletes foram vistas a dar entrada em armazéns de comerciantes, agora só falta definir os preços, mas é seguro que no próximo sábado já se poderá beber um gin tranquilo, acaba-se de vez com esses sucedâneos com que as pessoas começaram a se enganar, como, por exemplo, vodca com sumo de laranja, ou Coca-Cola com gin cru, ou grogue com gelo e limão... Mas sábado sai sábado entra, e é a mesma desilusão, afinal o que parecia ser água tónica não passou de uma miragem, tal qual no deserto a gente com sede vê lençóis de água espalhados no horizonte..E porquê essa desesperadora crise? Que aconteceu de tão grave no mundo para virmos a ser vítimas da ausência desse algo que era tão corriqueiro na nossa sociedade que nem dávamos pela sua presença? Sim, o gin tónico é uma herança do tempo dos ingleses. O hábito british era tão comum em Mindelo, que muitos cujo salário não comportava as despesas domésticas mais o gin tónico limitavam-se aos sábados a vestir-se de ponto em branco, camisa, calções e meias até ao joelho, e sentarem-se na sala saboreando um grogue de Santo Antão como se fosse a apreciada mas cara bebida inglesa. E de tal forma o gin tónico entrou nos hábitos mindelenses que, certa vez, nos idos de antigamente, uma equipa de futebol foi a Praia jogar, e o que levou como grande novidade foi exatamente o gin tónico inglês, assim uma espécie de uma mensagem de neutralidade onde as rivalidades bairristas das duas cidades poderiam por algum tempo ficar de fora..E talvez por causa desse nobre gesto, o gin tónico acabou disseminado pelo país todo, tornando-se assim uma espécie de bebida social da classe média, do mesmo modo que o grogue continuou sendo a bebida nacional dos proletários e desempregados..Mas eis que num qualquer sábado se descobre que a água tónica esgotou-se completamente. Gin há muito. Além do tradicional Gordon, muitas outras marcas novas em garrafas bonitas invadiram as lojas. Mas tónico que é bom, nada. A consternação é palpável e pedem-se cabeças para rolar, alguém tem de ser responsabilizado por essa falha, um comerciante que se preze tem direitos mas também tem deveres, o jus utendi, fruendi et abutendi já é passado histórico, o próprio governo devia intervir através da Agência de Regulação Económica, punir com multa severa esse verdadeiro desleixo, para que não volte a acontecer segunda vez... Mas não, a culpa não é nacional, os culpados são os estivadores portugueses que resolveram entrar em greve prolongada sem primeiro acautelar os interesses dos irmãos cabo-verdianos....Que fazer? Resultaria um protesto junto do governo português? Com essa nova mania de que o Estado não deve intervir em zonas ditas privadas, o mais certo seria dizer-nos que não podem fazer nada. Aguentemos, pois, com paciência mais essa dependência do exterior..Escritor cabo-verdiano, Prémio Camões 2018