Agraw Amadlan Amazigh – a Assembleia Mundial dos homens e das mulheres Livres
Termina o mês de abril, termina o Ramadão e termina também uma certa euforia "berberista" no Magrebe, sempre associada às comemorações do "25 de abril Amazigh", a "Primavera Berbere" que colocou a Kabilya (norte da Argélia) a ferro e fogo, em abril de 1980, a propósito de uma conferência sobre poesia. A proibição do evento, a sua realização e o que daí resultou, 127 mortos e outras centenas de feridos, marcam a fronteira entre o antes e o depois, o sentimento de legitimação para o início da luta descarada pelos direitos dos autóctones do Magrebe, islamizados e arabizados desde o século VII pelo colonizador vindo de Meca.
Ora estes "muçulmanos não praticantes", vendo o jejum invadir-lhes as comemorações da abrilada, resolveram antecipar para o "março marçagão" a realização da 10.ª Assembleia Mundial Amazigh, organizada pela Assembleia Mundial Amazigh (Marrocos) em colaboração com o jornal Le Monde Amazigh, a Associação Tarwa n-Tiniri para o Desenvolvimento da Arte e a fundação alemã Friedrich Naumann para a Liberdade, sobre "Que medidas urgentes para proteger, revitalizar e promover as línguas autóctones dos povos da África do norte e do Sahel?"
Antes de avançar, esclarecer sobre quem são os povos amazighes, que comumente chamamos de berberes. Erro crasso aquando do contacto com os mesmos, já que berbere identifica(va) o autóctone bárbaro que não falava árabe aquando da islamização vinda "das arábias" nos séculos VI e VII. "Amazigh", nos antípodas do peso negativo atribuído ao "berbere", significa "homem livre", nas tradições nómadas dos habitantes dos chamados "grandes espaços", que no fundo constituem o Deserto do Sara. Em resumo, sendo esta uma constatação pessoal in loco, os amazighes dão graças a Deus por terem sido islamizados, mas vêm sempre no agente islamizador o malandro colonizador árabe que lhes tirou as terras, que os aculturou, que os arabizou através do sistema de ensino, que os colocou no século XXI na posição de resgatadores da sua própria memória e identidade. De tal forma se sentem os efeitos da arabização nesta África, que a História amazigh e tuaregue (outro galicismo perversamente unificador e redutor do complexo a mera casta) está exclusivamente redigida em árabe. Por isso mesmo a pertinência da realização desta Assembleia e sob este título, "Que medidas urgentes para proteger, revitalizar e promover as línguas autóctones dos povos da África do norte e do Sahel?" A urgência faz também do resgatador um socorrista, que continua a lutar contra o momento islamizante em curso, no grande arco da Mauritânia à Indonésia.
À parte deste encontro de março, Rachid Raha, que presidiu ao mesmo, em novembro de 2020, momento em que o debate em França versava sobre as razões da esmagadora maioria de marroquinos ou seus descendentes, estarem entre os autores da última vaga de ataques jihadistas em França/Europa. O presidente da AMA, Rachid Raha, em carta aberta ao ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Jean-Yves Ledrian, em visita a Rabat na altura, identifica uma razão fundamental para o fenómeno acontecer em França junto da comunidade marroquina. O programa educativo ELCO, adotado pelo Ministério da Educação de França, "Ensino das Línguas e Cultura de Origem", serviu apenas para arabizar estes marroquinos de origem rifenha, desenraizando-os da sua cultura e família original. O ensino do árabe foi imposto a gerações de berberes, achando os franceses que estavam a contribuir para uma ligação destes à sua terra e cultura, quando o efeito foi o contrário, passando a negligenciar os seus valores culturais de origem, abrindo portas ao processo de rápida radicalização. Também o "mundo amazigh" vivencia os desafios das contradições entre a tradição e a modernidade, tendo nas novas gerações bem entregue o lóbi das tecnológicas, com uma vitória assinalável ao verem o tamazight consagrado nas "línguas Google", uma nova UNESCO para os que já foram considerados enquanto "povos sem História"! O ADN também tem provado ser um esclarecedor histórico para estes povos e as comunidades amazighes muito têm conseguido provar quanto à sua ancestralidade enquanto terratenentes, enquanto primeiros e poderosos também. Várias dinastias de faraós estão identificadas como berberes, marcando a primeira o início do calendário amazigh, que já vai no ano 2972.
Outra característica destes homens e mulheres livres, é o facto de serem exigentemente exigentes, daqueles que no dia seguinte à consagração do tamazight enquanto língua oficial em Marrocos, se queixaram de todos os ministérios, universidades, esquadras de polícia e étecéteras, não terem ainda os letreiros na nova língua oficial colocados. Ou seja, tratam-se de uma força cívica e social que por via dos seus modos de vida portugueses, já que são verdadeiramente livres, tudo se lhes é permitido dizer. Este tipo de encontros, pretende sempre fazer uma síntese do pensamento vigente nas várias associações de aldeia, para a partir dessa "liberdade da Azóia" começar a filtrar as questões mais prementes a levar a debate. Por outro lado, este também é um palco ideal para demonstrarem que não são das meias-tintas, mas antes politicamente esclarecidos e capazes de tomarem partidos, reconhecidamente integrados no grande xadrez euro-africano. Um palco de exigências e quase ultimatos ao rei, ao presidente, à União Europeia!
Sobre Marrocos, a AMA saúda a posição do novo governo de Marrocos, na consideração demonstrada pelo dossiê amazigh, concedendo-lhe um orçamento anual. Exige também o cumprimento da lei e a aplicação com caráter de urgência do ensino das línguas amazigh, consoante a região, no pré-escolar e no ensino primário. Exigem também um representante competente nos trabalhos para a normalização e estandardização da língua amazigh, no seio do Conselho Nacional das Línguas e da Cultura Marroquina. Insistem sobre o reconhecimento oficial do calendário amazigh e respetivo feriado nacional e recordam ainda uma antiga querela administrativo-semântica entre a utilização oficial do termo "Magrebe árabe" e o correto, do ponto de vista autóctone e que deveria ser "Grande Magrebe". Apelam também à libertação dos detidos do Hirak do Rif, movimento contestatário por melhores condições de trabalho na região norte, a partir da morte do "peixeiro de al-Houceima" em 2016.
O recado para Argel foi o seguinte. Dirigindo-se às autoridades argelinas, mais concretamente aos generais, a AMA exige a liberdade incondicional de todos os presos políticos, referindo-se essencialmente a militantes do MAK, o Movimento de Autodeterminação da Kabylia, mas também jornalistas, advogados, bloggers, ativistas dos direitos humanos. O MAK deverá também deixar de ser considerado como grupo terrorista. A AMA exige igualmente que a Argélia responda a todas as reivindicações legítimas e democráticas feitas pelo Hirak d"Algérie, um Movimento das novas gerações contestatário de um 5º mandato presidencial de Abdelaziz Bouteflika, em 2019. Bouteflika não concorreu, já morreu aliás (2021), mas a mudança geracional ainda não foi feita, estando no Hirak alguns dos futuros líderes civis, sendo também previsível uma preponderância militar na continuidade do processo de tomada de decisão. Enquanto marroquina, a AMA não deixou escapar este palco para apelar a novas eleições presidenciais e legislativas transparentes no país vizinho e subsequente reatamento de relações diplomáticas com a abertura das fronteiras terrestres entre Argélia e Marrocos.
Na Líbia, a AMA aponta a mira para as Nações Unidas e União Europeia, exigindo maior pressão para a retirada de tropas mercenárias, um elemento estranho ao norte de África, muito mais perverso e incompreendido que um exército estrangeiro. Os homens e as mulheres livres líbios/as deverão, após a saída deste elemento estrangeiro, serem porta-vozes ativos de soluções para o pós-guerra. A incapacidade de realizarem eleições em dezembro passado, significa para a AMA a prova de que a Líbia necessita de uma nova Carta Constitucional democrática e inclusiva e que opte pela solução federal, permitindo assim a cada uma das regiões organizarem eleições de per si. A nova Líbia necessita ainda de consagrar o amazigh constitucionalmente. O Alto Conselho Amazigh da Líbia boicota o ato eleitoral enquanto esta língua não for considerada oficial e a AMA apoia.
Para os tuaregues do Azawad e do Níger a AMA condena os crimes cometidos por todas as forças terroristas no norte do Mali e na zona das três fronteiras (Mali, Burkina Faso e Níger) e pede à Comunidade Internacional para ajudar a parar o que consideram de limpeza étnica face às comunidades tuaregues. Há um historial na região, que não é recente, de matança de tuaregues de tez mais escura, por mero racismo, bem como da instigação à criação de milícias étnicas por parte da Al-Qaeda do Magrebe Islâmico, explorando as vulnerabilidades de populações que entre a espada e a parede, não raras vezes têm que escolher a espada! A AMA afirmou também neste encontro que a chave para a estabilidade do Sahel e do Grande Sara, passa pela concessão da autonomia política a Azawad (norte do Mali) que permitirá à população local a autogestão, dentro de um quadro federal maliano.
O federalismo é o modelo político em prática, mais próximo do advogado por este tipo de associações que pugnam pelo identitário e pela compensação de direitos históricos e que vêm na constituição da Tamazgha, a materialização do irredentismo tuaregue. O sonho é simples e irrealizável, o de um Magrebe/Sahel confederacional sem fronteiras, isento de passaportes também e onde as comunidades circulariam livremente, realidade anterior ao período colonial e memória idílica de um passado pleno de harmonia, quando a História nos assinala um território permanentemente picotado de pequenos conflitos, naturalmente de baixa intensidade e geralmente com origem na partilha da sachola, no acesso ao poço, ou na partilha da água para a rega. Por outro lado, as alterações climáticas em tudo dificultam este movimento irredentista, que o atual presidente do Níger, Mohamed Bazoum, promete continuar a combater, o que também foi alvo de denúncia nesta Assembleia Mundial, de 25, 26 e 27 de março.
Politólogo/Arabista