Adsumus – Estamos presentes

Testemunho de João João Mendes, médico intensivista no Hospital Amadora-Sintra e na CUF Infante Santo, há dois meses envolvido na resposta à pandemia.
Publicado a
Atualizado a

Ao fim de dois meses de atividade praticamente continua em duas Unidades de Cuidados Intensivos e tendo ativamente participado na resposta dada pela Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos à COVID-19 , penso ter legitimidade para afirmar que Portugal se pode orgulhar da resposta dada à pandemia até à data. No entanto, é essencial neste ponto uma reflexão para perceber como aqui chegámos e que desafios se afiguram.

Em fins de fevereiro entre os profissionais de saúde destacados para a dita linha da frente vivia-se um sentimento de catástrofe eminente, pois às imagens transmitidas pela comunicação social somavam-se os relatos na primeira de pessoa de profissionais amigos dos países então mais afetados pela pandemia. A 2 de março foram notificados os primeiros casos de COVID-19 em Portugal e pouco tempo depois começaram a dar entrada doentes em situação crítica nos Serviços de Medicina Intensiva.

Os doentes começaram a ser tratados com uma vaga noção de tudo, que inclusive divulgámos sobre a forma de normas de orientação clínica, mas sem um real conhecimento de nada. Por forma a aumentar o conhecimento sobre a doença assistiu-se mundialmente a uma aceleração dos processos de publicação e divulgação que se traduziu por um crescimento exponencial do volume de publicações, disponibilizadas online de forma gratuita pela maioria dos periódicos. No entanto, esta louvável tentativa levantou sérias preocupações relacionadas à qualidade do processo de revisão por pares e consequente qualidade das publicações.

As corajosas e atempadas medidas políticas colocadas em curso em meados de março resultaram numa evolução mais lenta do número de casos, o que deu aos profissionais de saúde o tempo para pautar a informação veiculada pelas publicações científicas com o saber adquirido com a casuística e discussão interpares. Se algum sucesso se verificar no outcome dos doentes internados em Serviços de Medicina Intensiva, traduzido por uma mortalidade mais baixa que o expectável, dever-se-á a estes fatores associados a uma invulgar disponibilidade e dedicação de todos os profissionais de saúde.

A incontornável necessidade de dar início ao levantamento faseado das medidas de confinamento traz grandes desafios na prestação de cuidados de saúde, nomeadamente na resposta ao doente crítico. O sucesso das medidas instituídas resultou numa baixa taxa de imunização da população pelo que a doença se tornará endémica, sendo expectável uma ou váriasondas secundárias. Este facto impede que os circuitos e áreas hospitalares COVID-19 sejam para já desativados, com o consequente consumo de recursos humanos e logísticos.

Simultaneamente dois outros fatores vão forçar a capacidade de resposta ao doente crítico: a retoma da atividade cirúrgica complexa programada e o internamento de doentes em fases particularmente avançadas de doença, virtude de se terem mantido confinados com receio de recorrem aos serviços de saúde.

Por fim, é preciso reconhecer que os profissionais de saúde inicialmente preparados para um sprint e que se encontram agora no meio de uma longa ultra-maratona estão psicologicamente mais vulneráveis. O ambiente de elevada pressão que se mantém associado ao sentimento de incerteza e afastamento dos relacionamentos de suporte a que muitos devotaram resultará invariavelmente no aumento dos casos de burnout.

Os profissionais de saúde estão e vão-se manter presentes mas o sucesso no combate à COVID-19 estará sempre dependente da responsabilização de todos e de cada um de nós.

Médico Intensivista

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt