Adeus, Dragon Inn

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Não é uma questão de nostalgia, não. E ainda assim não posso esquecer as tardes da minha adolescência passadas no cinema de Vilamoura, que tinha confortáveis cadeiras de estofos vermelhos (não ia ver filmes por isso, mas gosto da memória). Olhava em volta, e quase sempre só estavam meia-dúzia de cabeças. Não poucas vezes turistas. Depois, essa beleza da solidão no território western da sala foi dando lugar à estranheza de umas máquinas de jogos colocadas à entrada para chamar o freguês. Um dia cheguei e a fachada tinha um letreiro de supermercado; vi inclusivamente pessoas a saírem já com sacos de compras. Nunca esqueci o desgosto.

Não é uma questão de nostalgia, não. E ainda assim não posso olhar para o encerramento dos cinemas Medeia Monumental, em Lisboa, com a ligeireza da expressão "os tempos mudam". Sim, os tempos mudam e também o cinema se transformou, desde o aparecimento do som, passando pelo Technicolor e Cinema Scope. Mudou da película para o digital, e agora até estreia na Netflix. No entanto, ainda se fazem filmes a preto e branco e, ao mesmo tempo, ainda há quem escolha trabalhar com película, por nobre nostalgia ou pura convicção. A riqueza do progresso é esta: as coisas mudam, mas podem conviver com a reminiscência do passado.

Mais do que assaltada por uma profunda melancolia, penso: o que será do cinema na paisagem dos hábitos sociais e culturais? A importância que a programação do Monumental tinha - e já estou a falar no pretérito perfeito, embora as salas mantenham a sua atividade regular até 20 de fevereiro de 2019, passando depois a sessões de fim-de-semana até ao início das obras do edifício - era a de oferecer aquilo que falta aos cinemas das grandes superfícies comerciais, cujas bilheteiras vendem pipocas... e bilhetes de cinema. Isto é, oferecer cinematografias diversas, independentes, e a experiência de um filme no seu ritual clássico, que permite um outro "modo de ver", para usar o título de John Berger (ele que também pisou as salas do Monumental). Isto só continuará a acontecer, falando de Lisboa, no Espaço Nimas e no Cinema Ideal. Duas salas.

Não será sequer novidade que os espetadores se transformaram em consumidores. Tanto assim é que o produtor e distribuidor Paulo Branco, responsável pela Medeia, falou de uma "quebra dramática de espetadores", colocando a pergunta: quem vai ao cinema neste momento em Portugal? No fim da conferência de imprensa, convidou os jornalistas a ficarem pelo menos para os primeiros minutos da sessão das 13.45, no Cineteatro. Ia passar o Roma, de Alfonso Cuarón, filme que é o melhor exemplo do paradoxo dos nossos tempos: tem carimbo da plataforma streaming Netflix, mas é na amplitude do grande ecrã que ele faz sentido. E sem o som das pipocas.

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