Adeus BPN, olá Serralves

Guardada num cofre, a coleção Miró do BPN vai poder ser vista ao público a partir de sábado na Casa de Serralves. o DN nos bastidores da montagem de um exposição sem preço
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Se pudesse fugir só com uma coisa, Robert Lubar Messeri, escolhia esse quadro azul da exposição Joan Miró: materialidade metamorfose, que abre ao público no sábado. "Se desaparecer, já sabem onde procurar", ri-se. O curador da exposição descreve a obra, azul, de 1937, com entusiasmo. "Lírica, poética, visualmente forte". Vai estar numa das salas do primeiro piso, ainda por montar ontem, dia em que a equipa se dedicou ao segundo piso.

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A casa de Serralves era um entra e sai de gente com prumos e ferramentas. O mapa das salas em cima de uma mesa, obras guardadas em vitrinas, à espera de chegarem à parede. Ao início da tarde, com o primeiro piso a tomar forma, Messeri começa mostra uma das primeiras salas a ficar completa. Aquela em que as impressões jogam com um dos seus quadros. Faz uma observação em jeito de introdução. "Não está organizada por ordem cronológica porque não havia suficiente para isso, mas por temáticas."
A opção era mostrar a "técnica e inventividade" do artista catalão, cuja carreira começa na década de 20 e termina, com a sua morte, em 1983. Frisa: "É um dos artistas mais inventivos do século XX".

É disso que fala também o título escolhido para a mostra em Serralves. Mostrar os muitos materiais que usou, mas também "como Miró os transportou de uns para outros. Não é uma metamorfose biológica, é transformação e tradução." Na passagem entre os vários meios está, também, o ato de traduzir, abraçar as especificidades de cada meio. É o que se vê nessas tapeçarias do início dos anos 70 que nada têm de vulgares tapeçarias, tecido bruto, bordado com rudeza. Telas a que Miró foi acrescentando as cordas do moinho onde estava a trabalhar. "O processo é parte da obra", explica Robert Messeri.

É a primeira vez que estas peças adquiridas como investimento por Oliveira e Costa enquanto presidente do Banco Português de Negócios veem a luz. É o culminar de um processo que começou quando, como património do BPN, foram integrada na Parvalorem e Parups, entidades responsáveis pela recuperação do património do banco. Deviam ter sido leiloadas em fevereiro de 2014 na britânica Christie"s e foi lá que Messeri, que as conhecia dos livros, as viu, a convite da leiloeira. "Estão melhor aqui em Serralves", afirma. Faz um ar entre o divertido e o irónico quando se fala da controversa em torno dos quadros. Quatro providências cautelares impediram que fossem à praça.

Dizer que ficavam em Portugal e que seriam exibidas ao público foi uma das primeiras medidas tornadas públicas por João Soares, como ministro da Cultura do governo PS, suportado no parlamento por BE e PCP. Castro Mendes, atualmente no cargo, ratificou-a. Serralves foi o local escolhido para a mostra.

Quando as portas fecharem, os Miró ficam na cidade Invicta, declarou o primeiro-ministro. O presidente da câmara, Rui Moreira, prometeu para a inauguração de amanhã, às 18.30, com António Costa e o presidente da República, novidades sobre a futura localização da coleção. Ontem, a meio da tarde, acompanhado pela presidente do conselho de administração de Serralves, Ana Pinho, e pela diretora do Museu, Suzanne Cotter, visitou a casa, falou com o curador e viu algumas das obras mas não quis fazer declarações.

"Arte não é uma commodity"

Serralves seria bom destino para a coleção? Cotter, como Robert, guardam energias para a arte e querem distância da política. "O local tem de preservar a coleção, apresentá-la bem, quer para o artista quer para o público, e ser sustentável", resume a diretora.

Messeri assegura que o debate político está longe das suas preocupações. "Estou a olhar para a arte, para a coleção, e não teria associado o meu nome se não acreditasse [na sua qualidade]". Diz mais: "A arte não é uma commodity" [um ativo financeiro]. E, por isso, recusa pôr uma etiqueta aos quadros. Valem os 35 milhões que Parvalorem e Parups esperavam arrecadar com a sua venda? "O que digo é que não comento". Faz uma avaliação mais ampla. "O Governo tomou uma decisão sensata ao ficar com a coleção porque o valor da coleção para futuras gerações é muito maior do que o valor monetário que tem hoje".

Judeu de origem sefardita, Robert chegou de madrugada de Nova Iorque é a sua cidade. A cidade do Museu de Arte Moderna, onde, criança, vindo de Brooklyn, onde cresceu, viu Miró pela primeira vez. "A minha mãe era uma pessoa culta, levava-me a mim e à minha irmã a ver museus", conta. "Quando chegou a hora de escolher um tema de doutoramento, estava claro." Esses caminhos levaram-no de volta ao país de onde os antepassados foram expulsos no século XV.

Os dados biográficos ajudam a explicar a sua chegada a Serralves. Além de ser um especialista em Miró, é diretor da Universidade de Nova Iorque em Madrid, professora da Universidade Aberta da Catalunha, membro do conselho curatorial da Fundação Joan Miró, em Barcelona. Prepara para esta instituição uma mostra da série de obras em masonite que Joan Miró para 2021. São 27 ao todo, seis estão nesta coleção. "Espero poder contar com a generosidade do Estado português".

Estas são algumas das peças que o curador destaca na exposição. Lado a lado com um dos três retratos imaginários de Miró, feito para uma retrospectiva em 1974. Outro quadro de relevo é a bailarina espanhola, de 1924, que se encontra no salão da casa. Uma época de grandes experiências para o pintor catalão. Quando estes 83 quadros e duas esculturas encontrarem a morada definitiva, a mancha de Miró atravessará a Península Ibérica, com coleções abertas ao públicas de este a oeste: Maiorca, Barcelona, Porto. "Espero que haja trocas produtivas entre as três instituições", diz.

Para já, estreia-se na casa de Serralves, o palacete cor de rosa, de traço moderno. Suzanne Cotter diz que vai bem com a coleção Miró.

A decisão de mostrar a coleção é do início do ano. Castro Mendes entrou no comboio que João Soares pôs em andamento. Cotter procurava um curador, aconselhou-se com fundação em Barcelona e foi um antigo professor que a pôs no caminho de Robert Messeri.

Em julho, os quadros saíram do cofre onde estavam guardados, em Lisboa. Marta Almeida, curadora de Serralves e Messeri viram-nas. Dois dias de trabalho deram pistas para a exposição que está prestes a inaugurar. Ato seguinte, reuniram-se já em Serralves com o arquiteto Siza Vieira. O primeiro Pritzker português criou os dispositivos museográficos, paredes em equilíbrio milimétrico com a casa. Messeri elogia o trabalho, chamando a atenção para um detalhe. As longas paredes são afinal duas, em tamanhos desiguais, que criam uma quebra.

Robert concebeu as tais oito salas e um diálogo entre as peças. Deixou uma dezena de fora. Explica porquê. "Não é porque sejam trabalhos menores. Não entravam na minha perspetiva curatorial. Não teriam interesse para a narrativa. Podia ter lutado para os incluir, mas não seria um encontro feliz."

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