Fernando Rocha Andrade: "Acho que não vai ser fácil este governo durar quatro anos"
Chegámos ao mesmo tempo ao restaurante escolhido pelo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais mais pela proximidade da casa alugada perto do Marquês de Pombal do que por algum especial encanto. Veio de carro, para garantir que chegava a horas - saído de uma entrevista -, mas todos os dias vai de metro para o ministério. Além de andar de transportes públicos, bebe, fuma e sobretudo fala. Não é um político comum.
É a segunda vez que Fernando Rocha Andrade, aveirense de corpo e alma chegado a Lisboa há três meses para assumir a pasta, janta no Xenu. "Vim aqui uma vez com a Mariana Vieira da Silva" (secretária de Estado adjunta de António Costa). O cesto de pão chega com um convite - "acabou de sair do forno" - e o secretário de Estado aceita-o de imediato. Veio de uma série de conversas com jornalistas sobre a nova fórmula da Fatura da Sorte, que troca os Audi por certificados do Tesouro, mas não é disso que fala enquanto vai fazendo desaparecer o pão com a manteiga a derreter por cima - lá chegará mais adiante, para explicar que as boas políticas devem ser mantidas, ainda que possam ser ajustadas.
Tirou o casaco e o blazer, senta-se em mangas de camisa, suspensórios cor-de-rosa, e responde sem reservas, como se não fosse a primeira que nos sentávamos a conversar. Vai contando como conheceu a mulher há 30 anos, mas só se juntaram há três - diz-me que ela é vegetariana, ele tem pinta de bom garfo. "Eu tive razão antes do tempo. Conheci-a aos 15 anos, pedi-lhe para namorar comigo e ela deu-me com os pés. Demorou este tempo todo a reconhecer o erro." Ri-se, continua a explicar que não são casados, "em parte porque já fui casado e não se acredita uma segunda vez naquela coisa toda e porque, como diz um amigo meu, o casamento à esquerda só está in entre pessoas do mesmo sexo." Volta a rir, a gargalhada a denunciar anos de cigarros consumidos. "Era aquele padrão de vida de classe média de província: acaba-se os cursos, casa-se, tem-se filhos..." Ele não os teve. "Tudo isso ruiu rapidamente, o casamento não sobreviveu à distância. E agora passou o tempo para aturar pirralhos." Nessa altura fazia a sua primeira passagem por Lisboa a convite de António Costa, de quem é amigo mas que até hoje não consegue tratar por tu - "gosto muito dele, vou a casa dele e ele à minha, mas conheci-o como meu patrão e nunca me consegui habituar..."
A deixa está dada. Considera-se de classe média? "Não me livro dessa tão cedo... O que chocou muita gente naquela minha intervenção foi o facto de as pessoas terem uma visão umbiguista da classe média e eu as ter confrontado com a realidade do país. Pelos meus rendimentos ou estilo de vida fora do governo tenho vantagem: sou filho, neto, bisneto e trineto único de uma família de classe média rural que pela acumulação de património tem um certo desafogo." Diz que tem o conforto raro de nunca ter tido de se preocupar com a prestação da casa. "Quando eu era professor universitário vivia com o ordenado de 1500 euros; comprei a primeira casa com dinheiro do meu pai, a segunda em Lisboa com a ajuda dele... Só isso faz uma diferença enorme, põe-me claramente acima das pessoas da minha geração. O que vejo nas estatísticas é que há imensas pessoas que ganham 700, 800, 900 euros brutos, imensa gente a ganhar perto do salário mínimo, eles são a maioria. As pessoas com mais de dois mil euros já não são classe média, estão na faixa de 10% de rendimentos superiores." Socorre-se da definição de classe média de Thomas Piketty para justificar que 90% recebem menos do que isso, logo, "se pensamos que estamos a governar para uma classe média acima de dois mil euros estamos a governar para 10% do país, os 10% mais ricos".
O cabrito assado e o meu bife de atum rodeado de batatas fritas às rodelas, acompanhados com vinho tinto, trazem à conversa a maneira como Rocha Andrade chegou ao governo. O convite de António Costa não foi uma surpresa - "mas eu esperava uma coisa mais resguardada... falámos nisso meses antes". Achavam que venceriam as eleições, ou sabiam que iam perder? "A minha convicção era de que o mais provável era não ganharmos." Acredita que a coligação "teve mais votos" porque fez o mesmo que Sócrates tinha feito: "Impôs os sacrifícios e depois veio com o discurso de que afinal valeu a pena; e os sinais tímidos de retoma que foram surgindo davam sentido a esse discurso". Mas a derrota não foi um balde de água fria? Para Rocha Andrade não. "Eu disse que não ganhávamos na semana em que José Sócrates foi preso. As pessoas acham que foram vigarizadas pelos governos anteriores e a tese é reforçada quando um ex-primeiro-ministro é preso. A lesão de credibilidade é gigantesca. Ainda hoje, às vezes, estou a explicar políticas e vejo que as pessoas acham sinceramente que somos capazes de dizer uma coisa e fazer o seu contrário, ou que o que estou a dizer não está no Orçamento. Têm um nível de desconfiança a esse ponto."
Esperando ganhar ou não, o PS já trabalhava numa solução. "Isto que se fez no dia das eleições foi discutido em duas reuniões diferentes no PS." Isto? "A hipótese de não abdicar de uma ideia em que o governo fosse feito pela força com mais votos. Ou seja, na altura, ainda sem os resultados, a questão era mais abstrata, o CDS podia desligar-se do PSD, o PS podia ter mais deputados do que o PSD, tudo isto estava em cima da mesa", apesar de não haver ainda conversas com a esquerda.
Nessa altura, Fernando criticou no Facebook o facto de PCP e Bloco terem colado o PS à direita, falar em farinha do mesmo saco. Não tenta justificar-se quando lho recordo - nunca tenta, aliás. Na maneira como fala vê-se que não está amarrado, formatado. E não tem problemas em confirmar que não acreditava que o acordo com BE e PCP fosse possível. "Achei que nos estávamos a meter numa armadilha. Eu sou tido como um dos tipos à direita, sempre que falo com pessoal do BE e do PCP aviso logo que sou um conhecido reacionário. Na comissão política nacional até fui malvisto pelo meu discurso porque disse: a malta não pode bater com a porta ao PCP e ao BE porque parece mal ao nosso eleitorado não fazer um governo de esquerda, mas o pior que nos pode acontecer é eles aceitarem. Mas depois percebi que havia um empenho muito grande em chegar a acordo e que se acreditava mesmo nesse acordo."
O tema era discutido regularmente em casa. A mulher de Fernando - que veio a Lisboa para assistir à queda do governo de Passos Coelho no Parlamento - é amiga de Catarina Martins, madrinha de uma das filhas da líder do Bloco de Esquerda, e Ágata Fino até fez parte das listas do Bloco por Aveiro. "Foi candidata contra mim e lá em casa era ela a grande entusiasta do governo de esquerda." Para Rocha Andrade, o grande teste foi a votação das medidas de prolongamento de receitas, o que era necessário para que o Orçamento fosse exequível. "Quando o PCP votou a favor eu pensei: afinal a geringonça até funciona!"
Antes que o mil-folhas "fantástico" de Fernando Rocha Andrade, acompanhado de um cálice de Porto, e o meu café cheguem, aproveito o primeiro cigarro da noite para lhe perguntar sobre o ministro das Finanças. São amigos? "Gosto muito do Mário Centeno), mas só nos conhecemos desde o dia do cenário macroeconómico - de facto já parece há muito -, antes não sabia quem era. Mas damo-nos muito bem, gosto muito de trabalhar com ele e tenho uma vantagem: como ele é economista e eu sou de Direito, complementamo-nos. Sou o único a falar, além dele, do Orçamento do Estado porque ele sente-se mais à vontade na parte orçamental do que na fiscal, que é mais jurídica - e que tem um impacto desproporcional na comunicação." Faz questão de elogiar o trabalho de Pedro Nuno Santos, secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, ponte entre os partidos que viabilizam o governo e o PS. "Às vezes até lhe digo que ele parece um sindicalista! Tem o caderno reivindicativo da esquerda."
O secretário de Estado fala sem filtros, diz que não tem problemas em reconhecer e manter o que vem de trás desde que funcione - nas Finanças há "muita continuidade" porque os serviços são bons. "Há sempre coisas que queremos corrigir." Até agora, a prioridade foi o Orçamento do Estado. Terá tempo para corrigir tudo o que quer? Pergunto-lhe se acredita que o governo ficará até ao fim. "Acho que não vai ser fácil." Porquê? "Não estou a ver como se passam todos esses orçamentos: o primeiro passa, o segundo será mais difícil, depois será sucessivamente pior..."
E depois? Provavelmente o regresso à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde é regente de Economia e Finanças Públicas. "Isto da política é só uma passagem. Eu sou professor. É o que mais gosto de fazer. O meu pai era advogado, a minha mãe jurista, na minha família há uma história de licenciados em Direito em Coimbra até meados do século XIX. Eu gosto muito de ser professor, nunca quis ser advogado." Como nunca se sentiu coimbrão. "Nasci em Aveiro, sou de Aveiro e hei de voltar para lá!"
Com as mesas limpas e a sala quase vazia, a chegada do segundo café (só para mim, o café não o deixa dormir) e de mais um cigarro prenuncia o fim do encontro. Apaixonado por banda desenhada - "tenho uns metros de BD lá na casa de Coimbra" -, confessa que não tem o menor jeito para desenhar, ao contrário do grande amigo Sérgio Sousa Pinto, ou para qualquer tipo de trabalhos práticos. Gosta de fado - "de Coimbra, claro, tenho uma ligação emocional" - mas não sabe cantar. "Sou péssimo. Toquei piano durante dez anos, apesar de ter umas mãos péssimas."
Antes de dormir, ainda haverá tempo para uma passagem pelo Netflix. "Infelizmente não há o House of Cards." Há de escolher outra série: Narcos, por exemplo.
Xenu
› couvert
› cabrito assado
› bife de atum à portuguesa
› vinho Quinta da Fata
› mil folhas
› 1 Porto doce
› 1 Antiqua
› 2 cafés
Total: 58,25 euros