Abstenção. É nos distritos com menos deputados que se vota menos
25 de abril de 1975, as eleições mais participadas da democracia portuguesa; 6 de outubro de 2019, as legislativas onde a abstenção atingiu um recorde absoluto. A diferença conta-se num número: a abstenção aumentou mais de seis vezes. Se excluirmos a votação de residentes no estrangeiro, que sempre foi mais baixa, e que tem níveis de abstenção desde 1985 acima dos 70% (foi mais de 89% em 2019), o número não é mais suave: mais do que quintuplicou.
E nos círculos eleitorais, há diferenças? O que acontece naqueles, que são a grande maioria (16), onde o número de deputados a eleger é reduzido? Analisando a última década, os últimos quatro "ciclos eleitorais" de 2009 a 2019, a conclusão é quase imediata: quanto maior o círculo, menor a abstenção. É no restrito grupo dos círculos eleitorais que elege mais de 70% dos deputados que a abstenção é menor. É uma estreita e curta linha ao longo do litoral, de Braga a Setúbal, incluindo Santarém.
Os cinco círculos eleitorais que elegem 60% dos deputados (Aveiro, Braga, Lisboa, Porto e Setúbal) são aqueles onde a participação eleitoral é mais elevada, ficando a abstenção abaixo ou ligeiramente acima da média nacional. Logo de seguida surgem Santarém, Coimbra e Leiria, que elegem 12% dos parlamentares, com valores de abstenção semelhantes. Nos restantes, os que elegem menos deputados, excetuando Castelo Branco e Évora que se aproximam deste grupo, a abstenção é muito mais elevada.
Os Açores são, dos 20 círculos nacionais, aquele cuja abstenção ronda, desde 2009, os 60% - nas últimas legislativas chegou aos 63,5%. Bragança e Vila Real são, no mesmo período, os mais abstencionistas no continente seguidos por Viseu, Viana do Castelo, Guarda e Faro, cuja tendência de quebra eleitoral se vem agravando.
Braga e Porto são os únicos dois círculos onde na última década (aconteceu nas legislativas de 2009) a abstenção não passou a fasquia dos 35%.
Pedro Magalhães, cientista político e investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, aponta duas ordens de fatores que explicam esta assimetria. A primeira tem que ver com "composição demográfica da população que vive em círculos maiores, é uma população que em Portugal tem rendimentos mais elevados e níveis educacionais mais elevados. Estas são duas características, especialmente o rendimento, mas em geral os recursos económicos e educativos que estão fortemente relacionados com a participação eleitoral; a segunda ordem de fatores tem que ver com a desproporcionalidade que é criada em círculos mais pequenos. Círculos mais pequenos geram maior desproporcionalidade na conversão de votos em mandatos. Isso significa que há muitos mais votos proporcionalmente, em termos relativos, desperdiçados. E isso desincentiva os eleitores de votar".
"Há também voto útil porque as pessoas que se sentem próximas das ideias ou que se identificam com partidos mais pequenos não têm hipótese de eleger ninguém desses partidos num círculo como, por exemplo, Portalegre. Qual é a possibilidade do CDS, da Iniciativa Liberal, do Chega, do BE, elegeram lá alguém? É nula. Como é nula, isto gera dois tipos de reação: em parte voto útil, mas também é desincentivo ao voto das pessoas que se sentem próximas desses partidos, dessas ideias", afirma o investigador.
"E como se isto não bastasse", acrescenta, "como os partidos sabem que a possibilidade de eleger lá alguém é nula, não fazem lá campanha. E, portanto, não mobilizam as pessoas para o voto. No fundo acaba por diminuir o número viável de escolhas. Os partidos podem lá estar no boletim de voto, mas os incentivos que as pessoas têm para votar são menores."
Santana Pereira, professor de Ciência Política no ISCTE, sublinha essa "tendência para que os círculos eleitorais mais pequenos tenham uma taxa de abstenção, em média, que é mais elevada". A explicação, porém, não é única nem linear. "Falamos de características sociológicas desses eleitorados e não tanto de um fenómeno de retirada estratégica (não votar) porque se sabe que o voto pode vir a ser desperdiçado. Com base nos estudos que temos à nossa disposição, não encontramos esse raciocínio, de não ir votar porque não vale a pena, como sendo substancialmente mais forte em círculos pequenos do que em círculos médios e grandes."
"Os fatores de natureza sociológica que têm que ver com as características do eleitorado, da população, os fatores sociodemográficos, socioeconómicos que fomentam a participação eleitoral estão aqui em menor número, numa menor presença do que nos outros círculos", explica.
E há também "incentivos de tipo institucional", o facto de haver "a sensação de que mesmo partidos muito pequenos podem vir a eleger em círculos maiores, coisa que não acontece nos de menor dimensão".
Na investigação de João Cancela e Marta Vicente (Abstenção e Participação Eleitoral em Portugal, 2018), para além do diagnóstico e hipóteses de reforma, sobressaem algumas ideias essenciais sobre o fenómeno. A "desigualdade económica", as faixas etárias, a "identificação partidária" e até o dia em que se vota são fundamentos que agregados podem ajudar a compreender, em parte, o afastamento dos eleitores.
"As assimetrias de participação com base nos rendimentos têm vindo a aumentar. Entre 1985 e 2002 as diferenças de propensão para o voto entre os 20% com rendimentos mais baixos e os 20% com rendimentos mais altos só foram significativas em uma ocasião (1991). Entre 2005 e 2015 cavou-se um fosso entre estes dois grupos, que se tornou especialmente dilatado na eleição mais recente: em 2015 verificou-se uma diferença de 20 pp na propensão para o voto entre os inquiridos do primeiro (65%) e último (85%) quintis. Pode assim concluir-se que a desigualdade económica é hoje um fator a ter em conta na explicação da participação eleitoral em Portugal", revela o estudo.
Por outras palavras: "Se os mais pobres não votam, caminhamos para uma menor representação política."
Já a identificação partidária, "perceber se tem crescido a propensão para a abstenção entre aqueles que não se consideram próximos de nenhum partido", revela que "não há uma tendência definida em curso, pelo que não é possível inferir que a diminuição da participação se deva ao aumento da tendência para a abstenção entre os eleitores que não se sentem próximos de qualquer partido". No entanto, é sublinhado que "nos anos 1985 e 1987, cerca de dois terços dos inquiridos portugueses pelo Eurobarómetro afirmavam sentir-se próximos de um partido. Nos estudos pós-eleitorais mais recentes, conduzidos em 2009 e 2015, esta proporção desceu para 45% e 50%, respetivamente".
E as idades? "Os resultados revelam que o fosso de propensão a votar entre a população com idade inferior a 30 anos e os restantes grupos aumentou desde 1985: nesse ano as diferenças face aos grupos mais velhos atingiam os valores mais baixos, e em 2015 chegam aos valores mais altos. Contudo, a descida da participação não pode ser apenas imputada ao afastamento cada vez mais pronunciado desta faixa etária das urnas, já que há uma clara dinâmica de expansão da abstenção no grupo etário entre os 30 e os 44 anos. Desde 2002 que este grupo apresenta uma menor propensão para votar do que os dois escalões etários superiores. Estes dois escalões etários (45-64 e 65+) são assim claramente mais participativos do que a restante população, não apresentando diferenças significativas entre si", conclui a investigação.
Carlos Carreiras, presidente da Câmara de Cascais, que assina o prefácio do estudo, sintetiza a experiência de quem está na política desde os 14 anos: "Não votam porque não confiam no sistema, nos partidos e nos seus representantes. Não votam porque não identificam projetos políticos alternativos e estão cansadas da acrimónia estéril entre os protagonistas. Porque o sistema não está desenhado para facilitar a vida ao eleitor e, por isso, não admira que este encare o voto como um custo. Porque as pessoas sentem que o seu voto não conta para nada. Não votam porque se sentem incapazes de escrutinar ou, sequer, estabelecer uma ligação direta com os seus representantes."
"Ou porque, por último", e esta ideia tem ganho adeptos nos últimos anos, "há muita gente que encara a abstenção como uma manifestação de protesto."
Santana Pereira, professor de Ciência Política no ISCTE, equaciona ainda outras duas ideias: o voto útil e a sua ausência. "Há de facto a expectativa de quem em círculos eleitorais com baixa magnitude, aqueles em que estão poucos lugares em jogo, haja incentivos para voto estratégico. Ou seja, para as pessoas abandonarem os partidos de que mais gostam, de que estão mais próximas, para votarem noutro partido. No entanto, se nós olharmos para os estudos que foram feitos sobre o caso português, que infelizmente são muito poucos, não verificámos esta maior prevalência de voto estratégico nos círculos eleitorais mais pequenos. Em média, cerca de 3% a 6% do eleitorado votará de forma estratégica e isto varia de círculo para círculo, mas não varia de acordo com a dimensão do círculo eleitoral."
Quase sempre, explica, "isto acontece porque existem outros incentivos para o voto estratégico para além do desejo de não desperdiçar o voto. O principal incentivo é tentar, de alguma maneira, fomentar uma determinada maioria ou uma determinada solução governativa". Porém, "quanto mais baixo é o número de assentos parlamentares que estão em jogo, maior é o limiar de representação, ou seja, a percentagem que um partido precisa de ter, em média, para conseguir eleger deputados".
"E claramente nestes círculos eleitorais, todos os eleitores que votam noutros partidos que não aqueles que a priori estão bem posicionados para conseguir ultrapassar esse limiar, essa fasquia, terão o seu voto "desperdiçado". A verdade é que esse voto não se vai traduzir na eleição de um representante naquele círculo eleitoral e, tendo em conta as características do sistema eleitoral português, esses votos depois não vão ser repescados ou reaproveitados como poderiam ser caso houvesse um círculo nacional de compensação destas desproporcionalidades", afirma.
Distorção ou conjuntura demográfica? Santana Pereira responde juntando os dois significados. "É uma conjuntura demográfica que acaba por, devido a este fenómeno de desperdício de votos, constituir uma relativa distorção, uma desproporcionalidade. O nosso sistema eleitoral é um sistema de representação proporcional, mas o facto de haver muitos círculos de magnitude muito pequena faz que haja muitos votos que não se traduzem em representação parlamentar. Um partido com 10%, 15% ou 20% é um partido relevante naquele contexto, mas não elege ninguém, pode não eleger ninguém."
O caso de Portalegre, citado por Pedro Magalhães, é exemplar para fazer as contas ao desperdício. Nas legislativas de 2019, o PS com 23 013 votos conseguiu eleger dois deputados, os únicos deste círculo eleitoral. Os restantes 24 427, sendo 10 375 no PSD, não serviram para nada. Sendo esta a realidade porque nada muda? "Os partidos são muito avessos à mudança porque poderia criar um conjunto de alterações àquilo que são as suas forças relativas. Isso é um receio que os partidos políticos têm. Se mudam as regras do jogo, o resultado do jogo pode mudar. E muito provavelmente este receio tem sido, até agora, mais forte do que o desejo de revolver os problemas que o nosso sistema eleitoral tem", constata Santana Pereira.
E depois, há outro fator: a ausência de pressão pública. "O eleitorado, a população não está particularmente preocupada, parece-me, com esta questão. Talvez por desconhecimento, talvez pelo crescente afastamento da relação com os políticos."