Samuel Barata: "Abri a mente quando comecei a treinar com alguns dos melhores do mundo"
Samuel Barata nasceu em 19 de julho de 1993, em Lausana, na Suíça, mas mudou-se para uma aldeia na zona da Covilhã aos 10 anos. Foi lá que começou a correr no Grupo Desportivo A.C. da Bouça. O fundista correu a primeira maratona em abril. Em outubro bateu o Recorde Nacional da meia-maratona. Percorreu a distância em 59m40s, melhorando a marca de Luís Jesus que reinava há 26 anos. Este mês, o benfiquista garantiu a presença em Paris 2024 ao correr a Maratona de Valência em 2:07.35 horas.
Comemos pelo fim. No dia 3 de dezembro conseguiu o desejado apuramento para os Jogos Olímpicos que falhou em 2021...
Não foi fácil, elevei a fasquia e tentei correr mais rápido que o tempo de qualificação para me aproximar do Recorde Nacional. Paguei caro na parte final (22.º), mas consegui a marca de qualificação direta para Paris2024. A experiência de 2019 correu muito mal e falhei a qualificação para Tóquio2020, mas continuei a trabalhar e felizmente as coisas encaixaram-se.
Como lidou com a desilusão?
Em 2022 estava muito bem, muito bem treinado, tinha uma expectativa brutal de fazer um grande resultado nos 10 mil metros no Campeonato da Europa em Munique, mas naquele dia as coisas correram mal, acordei muito mal-disposto, não sei se foi mental, se foi físico... sei que não consegui concluir a prova. Tenho algumas pessoas ao meu lado que me ajudaram a superar isso, sobretudo a minha família, a minha namorada, os meus amigos, o meu grupo de treino. Voltei a treinar, voltei a motivar-me, e passado um ano e meio consegui obter resultados de nível superior e consegui a marca de qualificação para Paris2024. Valeu todo o sacrifício desses últimos meses, dos últimos anos.
Consegue identificar o momento em que as coisas mudaram?
Provavelmente no ano passado. Tive uma pequena lesão na anca, mas insisti e corri a São Silvestre de Lisboa e fiquei em 5.º. Não foi mau. Nessa altura autotreinava-me e fui para o Quénia, e aí é que tive o clique. Abri a mente quando comecei a treinar no estrangeiro, convivi com alguns dos melhores atletas e percebi que em Portugal somos tão bons ou melhores e o treino até está mais desenvolvido cá. Por vezes chegamos às grandes competições e inferiorizamo-nos. Acho que é uma questão mental. Treinar com eles fez uma diferença brutal em mim, porque sei como treinam e tornou mais fácil chegar à competição e pensar: "Eu treinei igualzinho a eles, estou nas mesmas condições, porque é que ele vai ali na frente e eu não?" Os melhores africanos já vivem naturalmente sempre em altitude, para chegar ao mesmo patamar temos de treinar como eles fazem, por isso nos últimos dez anos fiz uns oito estágios no estrangeiro e sobretudo em altitude
.. e assim bateu o recorde da meia-maratona e o dos 10km, que afinal não foi...
Eu bati o recorde dos 10km [risos], mas o percurso estava mal medido... tinha menos 25 metros. E pronto, não contou. Ficou a satisfação pessoal, além da frustração. Fiz uma boa prova, estava bem e não sei se vou voltar a ter condições tão boas. O desporto é muito efémero, hoje estamos bem, amanhã não sabemos se posso ter uma lesão e nunca voltar àquele estado de forma e não sei se terei outra oportunidade assim.
Os recordes são como um bónus?
Mesmo sem recorde, estar entre os melhores portugueses do meio-fundo e da maratona significa que estou a fazer um excelente trabalho e poderei aproximar-me dos resultados dos melhores. Sou o 3.º português a correr a maratona abaixo das 2:10.00 horas, só o António Pinto (2:06.36 horas) e o Carlos Lopes (2:07.12 horas) fizeram melhor. Dizia que queria baixar das 2.08 horas e estou super satisfeito por ter feito 2:07.35 horas. Agora, a fasquia está mais alta...
Portugal já tinha saudades de um maratonista...
O Samuel Barata atleta já existe há 12 anos [risos]. É um trabalho de muitos anos, tenho 30 anos, já não sou uma criança, foi um trabalho muito sustentado, de muita crença e resiliência. Sempre fiz resultados a nível nacional, fui Campeão Nacional várias vezes só que às vezes as coisas não saem como a gente quer. Às vezes treina-se muito e temos o resultado nas pernas sem nunca conseguirmos chegar lá. O meu saiu finalmente. Nas mulheres tivemos a Dulce Félix, a Sara Moreira, a Jéssica Augusto, com alguns bons resultados a nível internacional e nacional, que se aproximaram do Recorde Nacional da Rosa Mota. Nos homens houve um buraco geracional muito grande. A maratona é muito dura e os jovens atletas querem resultados imediatos e falta comprometimento com o treino. Agora já não se treina à bruta, consegue-se quantificar, ser mais lógico, mais científico e racional na abordagem ao treino, é difícil reter talento. Ou fazem logo a transição quando são novos ou o discurso passa a ser: "Eh pá, duas horas a correr, não, esquece lá isso".
Então o recorde está mais na cabeça que nas pernas?
Sem físico não adianta, mas há limitações que são mentais. Sempre treinei bem, mas os resultados não apareceram logo, porque se calhar havia limitações mentais.
Disse que se auto treinava?
Sim. Passei por um situação traumática, a morte do meu treinador Pedro Rocha , e precisei fazer o luto pessoal e profissional. O Benfica percebeu e deu-me esse tempo. Os treinadores de atletismo do clube como o Pedro Leite apoiaram-me sempre, mas o plano do treino era eu que fazia, na verdade fazia segundo as referência do Pedro Rocha. Agora, o treino da maratona é mais exigente, preciso de alguém com essa experiência. Em Portugal há poucos treinadores de maratona e comecei a ter o apoio do professor António Sousa, alguém que me acompanha nos treinos longos, alguém que percebe coisas simples do abastecimento e onde posso cometer erros.
E de repente quase tudo sai bem e consegue um recorde e uma qualificação olímpica...
Como diz o Francisco Belo [lançamento do peso], é preciso normalizar quando corre mal, ou seja, não ficar desmotivado, e normalizar o sucesso, aproveitá-lo com os pés assentes na terra, porque o sucesso acaba e o insucesso está à espera. A probabilidade de uma próxima prova correr mal é muito grande. O grande foco é Paris2024. Há outros objetivos intermédios, mas chegar a agosto no pico de forma é o objetivo. A maratona dos Jogos é uma prova diferente, não é para recordes e será num circuito completamente citadino, com muito calor e percurso empedrado. Os melhores do mundo vão correr na frente, mas às vezes também corre mal para eles.
É humanamente possível baixar das duas horas?
Sim. Estão a aparecer atletas extraordinários. O queniano Eliud Kipchoge correu-a em 1:59.40, o que é impressionante. Ele pensa que pode baixar das duas horas de forma legal. Eu acho que vai acontecer e será brutal. Neste momento é muito difícil combater estes atletas. Para ser honesto, o meu nível é europeu, mas os europeus também estão a correr muito. A minha perspetiva de recorde é 2.05 horas. Ainda tenho de correr muito para tirar dois minutinhos.
Quem é que queria ser quando era pequeno? Tinha alguma referência?
O Mo Farah e o Bekele, e o Rui Silva. Tive a sorte de já ter treinado com o Mo Farah num estágio em França. Eles foram porreiros e consegui treinar com eles, não é fácil porque são atletas de outra dimensão. Não são tão abertos. Têm de ser seletivos. Neste momento o grupo de treino do norueguês Jakob Ingebrigtsen é talvez o mais fechado.
Esse treino com o Mo Farah enche de orgulho o miúdo da aldeia?
É um orgulho e é uma realização muito pessoal. Muito pessoal mesmo. Enche-me muito o ego. Alguns dos melhores da Europa e do Mundo reconhecerem-me e saberem que há um português entre os melhores... Só que isto foi devagarinho. Primeiro foi ter o reconhecimento da aldeia, depois do distrito e do país, agora já tenho algum reconhecimento internacional. Isto enche-me o ego e motiva-me para ir treinar com dores, sem dores...
É possível ser atleta de topo sem um ego do tamanho do mundo?
Ego não é narcisismo, é egoísmo bom. Um atleta sozinho não vai a lado nenhum. A faceta humana importa. Posso bater os recordes do mundo, posso ser medalhado, mas tenho à volta pessoas que contribuem para o meu sucesso. O meu grupo de treino. Os meus amigos. O pessoal do staff do clube. E gosto também de contribuir para o sucesso deles.
Tem 30 anos, imagina-se a cumprir o sonho dos JO e sair sem se perpetuar mais 10 anos sem ganhar nada?
Essa é uma resposta complicada. Há cinco anos ainda pensava que isto ainda ia demorar a acabar, mas agora já cheguei aos 30 e tenho de preparar o pós-carreira, porque vai acabar. Eu estou cá em cima, mas sei que subir mais vai ser difícil. O objetivo é sair com a menor frustração possível. Gostava de desfrutar do momento, construindo um pós-carreira. Vejo-me a ser treinador. O pós-carreira financeiro é uma preocupação. Neste momento, sou profissional, mas é chapa ganha, chapa gasta. Neste momento invisto tudo no meu desenvolvimento. Consigo viver, mas não consigo juntar dinheiro para investir em projetos de vida, como ter uma casa própria. O atletismo não é como o futebol, é muito difícil viver disto, só mesmo quem ganha medalhas internacionais e tem projeção mediática que permita ter patrocínios de algum valor.
A maratona são 42 Km. O pensamento divaga para onde?
Eu não penso em nada. É estranho, mas o tempo passa rápido [risos]. Foco-me na corrida, sei que no fim vai doer. Foco-me sobretudo no ritmo, ir concentrado e estar atento a situações de prova, se é uma prova tática, lenta, quem ataca, se chove... Se for sozinho, o foco é na minha passada, na minha corrida, no meu ritmo... E há uma altura em que começa a haver fadiga, dói tudo e aí é mental...
O rapaz da aldeia chegou longe...
Eu sou da terrinha, Bouça, Freguesia de Cortes do Meio, a 15 minutos da Covilhã, que apesar de ser muito pequenina tinha muitos jovens e isso levou o David Bizarro, com 20 e poucos anos, a abrir uma associação dar vida à aldeia e eu fui para o futsal e o atletismo. Um dia o David Bizarro perguntou se queria ir a uma prova e eu cheguei lá e ganhei aquilo sem praticamente treinar. Tinha 12 anos. Da segunda vez voltou a desafiar-me e percebi que tinha algum talento. Ele disse-me: "Se começares a treinar, podes ser um bom atleta." O futsal acabou e fiquei no atletismo. Fui ao corta-mato nacional do desporto escolar e fiquei em 5.º lugar...E foi uma bola de neve, fui crescendo, fui obtendo mais resultados a nível nacional, ir a pódios, até chegar até júnior e receber um convite do Benfica. Vir para Lisboa foi uma mudança muito grande. Os meus pais gostaram do projeto, mas só aceitaram se eu continuasse a estudar. Escolhi ir para a Faculdade de Ciências. O curso de Química era exigente e eu não era profissional da corrida e os primeiros anos de sénior foram difíceis, mas sempre treinei e acreditei no meu potencial. O Pedro Rocha também sempre acreditou em mim, fiz resultados, mas os primeiros anos foram difíceis, é por isso que se calhar não tive tão bons resultados na altura. Mas tirei o curso e inscrevi-me no Mestrado. A partir de 2018 tornei-me profissional, apostei mesmo nisto a 100%. Em 2020 dei o salto e quase me qualifiquei para os Jogos, mas não consegui. Todos os anos evoluí qualquer coisinha até ser um dos melhores nacionais.
O curso vai servir para alguma coisa?
Acho que sim, mas perdi o comboio. Tenho noção disso. Tenho um curso feito, se calhar daqui a uns anos posso agarrar nisso, vai ser difícil, mas é possível retomar. Eu gosto muito da química analítica.
Há vida para lá do treino?
Sim e há um projeto familiar que tem de acontecer... ser pai. A minha namorada é um apoio brutal, no sucesso e no não-sucesso. Agora até aos JO não, ela sabe que tem que ser uma coisa em conjunto, e que também terá influência na minha performance porque implica noites sem dormir e preciso estar disponível para ela e o filho... Quando se fala de medalhas invisíveis, é um bocadinho isso. Reconhecer que, de alguma forma, as pessoas à tua volta se anulam em prol de ti.
Se um amigo o desafiasse e dissesse vamos ali dar uma corridinha...
E eu digo, eh pá, por menos de 20km não saio de casa [risos]. Às vezes brinco com atletas que fazem distâncias mais curtas.
isaura.almeida@dn.pt