"O meu nome é premonitório: Abel, a bell, um sino. Aos 14 anos fui para a Bélgica aprender a tocar carrilhão. Nasci em 1972 nos Açores, por acaso, durante uma comissão de serviço do meu pai, Abel, músico amador, que sempre quis que os filhos estudassem música. Somos quatro rapazes, todos chamados Abel, só muda o segundo nome. Com exceção do mais velho, produtor de cinema, todos somos músicos profissionais." Abel (Augusto) Chaves é carrilhanista do Palácio Nacional de Mafra..Como é que um jovem de 14 anos vai aprender a tocar carrilhão para a Bélgica? Comecei a tocar trombone na Filarmónica da Cova da Piedade e segui para o conservatório. Estava no segundo ano quando o meu pai - mais atento às notícias do que um rapaz daquela idade - viu que o carrilhão de Mafra ia entrar em restauro, em 1986, e que iria apurar-se um candidato a carrilhanista para enviar para a Bélgica com o intuito de se tornar o carrilhanista do palácio. Não fazia ideia do que era o instrumento, mas quis saber mais e inscrevi-me nesse curso, feito em 15 dias, com os interessados e os dois professores belgas que vieram cá e me escolheram nesse curso/concurso. Com 14 anos fui mandado, com uma bolsa de estudo, para a escola de carrilhão em Malines, na Bélgica..Foi uma experiência solitária? Na primeira noite, longe de toda a gente, acho que chorei, mas durou essa noite, também lhe digo. Conhecer pessoas novas, completamente diferentes, fez-me esquecer a solidão toda. Nos três anos que lá estive nunca me senti sozinho. Eu era o miúdo que toda a gente queria saber quem era, era uma coisa diferente do habitual. Posso agradecer muito aos meus pais terem acreditado em mim e terem-me apoiado. Imagine que tinham dito que não ia, nunca seria o músico, nem o carrilhanista, que sou hoje. Nunca teria esta oportunidade. Foi graças à coragem deles, e fé, se calhar, que correu bem. Hoje até seria mais difícil deixar ir uma filha ou um filho para outro país com 14 anos. Vou ficar-lhes para sempre grato. Deram-me ferramentas..E aprendeu holandês. Com 14 anos dá para aprender rapidamente e privei muito com os locais. Cheguei a dar entrevistas no último ano, no canal flamengo, na língua local. O holandês é o inglês dos carrilhanistas, é a língua internacional dos carrilhanistas, pois é uma arte que nasceu na Holanda e na Bélgica. Foram os primeiros a concretizar a ideia de se tocarem os sinos musicalmente e criar um instrumento, diferente do que fazemos no sul da Europa, onde um sino é usado como alarme, júbilo ou chamamento..Voltou aos 17 anos para tocar carrilhão. Quando cheguei da Bélgica tirei o curso de piano, hoje sou pianista e faço parte da banda sinfónica da PSP, também sou polícia - sou um polícia com a função de fazer música. Em 1993 fui nomeado um dos carrilhanistas oficiais com José Alves Gato, que tocava em Mafra há muito tempo, mas era comandante da TAP e não podia fazer disso o seu métier - foi por isso que se mandou alguém fazer o curso e ter esses concertos dominicais. Ficámos até 2001, altura em que começaram os sinais de alarme em relação aos suportes que sustentavam os sinos. É uma coincidência trágica que o primeiro sinal de alarme tenha sido a 11 de setembro de 2001. As torres a caírem e nós a verificarmos que a nossa torre também corria o risco de ser interditada, que estava doente e que podia provocar o desabamento dos sinos. Ficou assim até 2018. O carrilhão ficou esquecido, num estado lastimável, durante quase 20 anos. Um património desta riqueza....Um carrilhanista sem carrilhão. Que fez nesse interregno? Ver o instrumento naquele estado e ver-me impossibilitado de o tocar foi uma grande tristeza, algo colmatada, a partir de 2008, quando comecei a fazer concertos num outro instrumento, na Igreja dos Pastorinhos, em Alverca, um instrumento muito diferente do carrilhão histórico de Mafra, que tem uma afinação do século XVIII..Os sinos voltaram a tocar no dia 2 de fevereiro. A intervenção feita em 2018 foi espetacular, os carrilhões nunca foram intervencionados com esta seriedade e profundidade nas duas torres e nos dois carrilhões - o da torre norte, o carrilhão Levache, é um instrumento falhado, já nasceu desafinado e foi posto de parte muito cedo. Os sinos foram recuperados apenas do ponto de vista museológico, mas foram tocados no dia 2 de fevereiro, usando a sua afinação não tradicional, com uma peça que compus, cumprindo finalmente o desejo régio. Fala-se nos carrilhões de Mafra, mas é o da torre sul, o Witlockx, que é o instrumento de concerto. É fantástico, considerado o melhor do mundo entre os fundidos no século XVIII, e dos mais bem afinados..O que pensou no dia da inauguração? É o início de uma nova era. Sinto que hoje em dia há um acompanhamento e interesse popular que não existia em 1990 quando começou, as redes sociais contribuem para uma divulgação massiva. As próprias pessoas são muito mais exigentes, o que faz que tenhamos de prestar melhor serviço. Noto bastante essa diferença. Temos pessoas que vêm de longe e de propósito para ouvir os nossos concertos regulares. Impomos essa exigência a nós próprios, com um programa sempre diferente e eclético, que engloba música erudita e música mais popular. Pode achar-se estranho, sendo num palácio, mas a raiz do instrumento é popular, é para as pessoas estarem na esplanada a ouvir as peças e a reconhecer. É ao nível do chão que se ouve melhor o carrilhão..Ouve-se no Terreiro D. João V, virado para o Palácio. Das Quatro Estações ao Roberto Carlos. Costumo dizer que o carrilhão é o Spotify, a música está na cloud. Ouvimos de tudo. Há um grande repertório do século XVIII, idade de ouro do instrumento. No século XIX estava em declínio, mas no século XX, com o surgimento de uma mentalidade de restauro e conservação, foram recuperados instrumentos e adquiridos novos. Em Malines, um desses responsáveis foi o filantropo Rockefeller. Encomendaram-se muitos carrilhões nos EUA e compôs-se muito para o instrumento nos anos 1950, 60 e ainda hoje. No domingo de Carnaval, tocámos a Cidade Maravilhosa e samba. No dia 1 de março será o retomar dos concertos mensais dos 6 Órgãos em que o carrilhão da torre sul irá participar pela primeira vez com um recital de cerca de 30 minutos de receção ao público enquanto espera por entrar na basílica. O recital torna-se igualmente regular aquando da realização dos concertos de órgãos - pela primeira vez e como El-Rei D. João V desejou os dois magníficos conjuntos, sinos e órgãos, estarão lado a lado proporcionando uma animação e um espetáculo sem paralelo em todo o mundo..Onde se esconde o carrilhanista enquanto as pessoas ouvem? Conta-se que, um dia, quando o carrilhanista abriu a janela e agradeceu os aplausos, uma menina que assistia, vendo-o, entre os sinos e o relógio, achou que era o cuco a acenar. Existe, na torre norte, por cima do mostrador do relógio e por baixo dos sinos, uma cabina que protege o carrilhanista do som, já que estamos mesmo sob aqueles 53 sinos, que vão das nove toneladas aos quatro quilos. É lá que temos a consola, o teclado, controlado com as mãos e os pés. Existem relatos no passado de esta ser uma tarefa tão árdua que o carrilhanista tinha alguém para lhe fazer massagens musculares. Tocavam em calções e em roupa interior porque se passava muito calor ali dentro. Depois da última peça, aceno, guardo as minhas partituras e desço o mais rapidamente possível para confraternizar um pouco. É importante verem que o carrilhanista é de carne e osso e não um corcunda de Notre-Dame..Quem toca hoje o carrilhão do Palácio Nacional de Mafra? Tivemos cinco carrilhanistas belgas na inauguração e três portugueses. O histórico Francisco José Alves Gato, a Ana Elias, que também começou a sua formação ali em Mafra, e eu enquanto carrilhanista do palácio. Asseguro os concertos e um ciclo internacional em que vou convidar carrilhanistas internacionais em junho, julho e agosto. Entrámos numa nova era..Concerto de carrilhão Todos os domingos, às 16.00. Claustro sul do Palácio Nacional de Mafra Entrada livre
"O meu nome é premonitório: Abel, a bell, um sino. Aos 14 anos fui para a Bélgica aprender a tocar carrilhão. Nasci em 1972 nos Açores, por acaso, durante uma comissão de serviço do meu pai, Abel, músico amador, que sempre quis que os filhos estudassem música. Somos quatro rapazes, todos chamados Abel, só muda o segundo nome. Com exceção do mais velho, produtor de cinema, todos somos músicos profissionais." Abel (Augusto) Chaves é carrilhanista do Palácio Nacional de Mafra..Como é que um jovem de 14 anos vai aprender a tocar carrilhão para a Bélgica? Comecei a tocar trombone na Filarmónica da Cova da Piedade e segui para o conservatório. Estava no segundo ano quando o meu pai - mais atento às notícias do que um rapaz daquela idade - viu que o carrilhão de Mafra ia entrar em restauro, em 1986, e que iria apurar-se um candidato a carrilhanista para enviar para a Bélgica com o intuito de se tornar o carrilhanista do palácio. Não fazia ideia do que era o instrumento, mas quis saber mais e inscrevi-me nesse curso, feito em 15 dias, com os interessados e os dois professores belgas que vieram cá e me escolheram nesse curso/concurso. Com 14 anos fui mandado, com uma bolsa de estudo, para a escola de carrilhão em Malines, na Bélgica..Foi uma experiência solitária? Na primeira noite, longe de toda a gente, acho que chorei, mas durou essa noite, também lhe digo. Conhecer pessoas novas, completamente diferentes, fez-me esquecer a solidão toda. Nos três anos que lá estive nunca me senti sozinho. Eu era o miúdo que toda a gente queria saber quem era, era uma coisa diferente do habitual. Posso agradecer muito aos meus pais terem acreditado em mim e terem-me apoiado. Imagine que tinham dito que não ia, nunca seria o músico, nem o carrilhanista, que sou hoje. Nunca teria esta oportunidade. Foi graças à coragem deles, e fé, se calhar, que correu bem. Hoje até seria mais difícil deixar ir uma filha ou um filho para outro país com 14 anos. Vou ficar-lhes para sempre grato. Deram-me ferramentas..E aprendeu holandês. Com 14 anos dá para aprender rapidamente e privei muito com os locais. Cheguei a dar entrevistas no último ano, no canal flamengo, na língua local. O holandês é o inglês dos carrilhanistas, é a língua internacional dos carrilhanistas, pois é uma arte que nasceu na Holanda e na Bélgica. Foram os primeiros a concretizar a ideia de se tocarem os sinos musicalmente e criar um instrumento, diferente do que fazemos no sul da Europa, onde um sino é usado como alarme, júbilo ou chamamento..Voltou aos 17 anos para tocar carrilhão. Quando cheguei da Bélgica tirei o curso de piano, hoje sou pianista e faço parte da banda sinfónica da PSP, também sou polícia - sou um polícia com a função de fazer música. Em 1993 fui nomeado um dos carrilhanistas oficiais com José Alves Gato, que tocava em Mafra há muito tempo, mas era comandante da TAP e não podia fazer disso o seu métier - foi por isso que se mandou alguém fazer o curso e ter esses concertos dominicais. Ficámos até 2001, altura em que começaram os sinais de alarme em relação aos suportes que sustentavam os sinos. É uma coincidência trágica que o primeiro sinal de alarme tenha sido a 11 de setembro de 2001. As torres a caírem e nós a verificarmos que a nossa torre também corria o risco de ser interditada, que estava doente e que podia provocar o desabamento dos sinos. Ficou assim até 2018. O carrilhão ficou esquecido, num estado lastimável, durante quase 20 anos. Um património desta riqueza....Um carrilhanista sem carrilhão. Que fez nesse interregno? Ver o instrumento naquele estado e ver-me impossibilitado de o tocar foi uma grande tristeza, algo colmatada, a partir de 2008, quando comecei a fazer concertos num outro instrumento, na Igreja dos Pastorinhos, em Alverca, um instrumento muito diferente do carrilhão histórico de Mafra, que tem uma afinação do século XVIII..Os sinos voltaram a tocar no dia 2 de fevereiro. A intervenção feita em 2018 foi espetacular, os carrilhões nunca foram intervencionados com esta seriedade e profundidade nas duas torres e nos dois carrilhões - o da torre norte, o carrilhão Levache, é um instrumento falhado, já nasceu desafinado e foi posto de parte muito cedo. Os sinos foram recuperados apenas do ponto de vista museológico, mas foram tocados no dia 2 de fevereiro, usando a sua afinação não tradicional, com uma peça que compus, cumprindo finalmente o desejo régio. Fala-se nos carrilhões de Mafra, mas é o da torre sul, o Witlockx, que é o instrumento de concerto. É fantástico, considerado o melhor do mundo entre os fundidos no século XVIII, e dos mais bem afinados..O que pensou no dia da inauguração? É o início de uma nova era. Sinto que hoje em dia há um acompanhamento e interesse popular que não existia em 1990 quando começou, as redes sociais contribuem para uma divulgação massiva. As próprias pessoas são muito mais exigentes, o que faz que tenhamos de prestar melhor serviço. Noto bastante essa diferença. Temos pessoas que vêm de longe e de propósito para ouvir os nossos concertos regulares. Impomos essa exigência a nós próprios, com um programa sempre diferente e eclético, que engloba música erudita e música mais popular. Pode achar-se estranho, sendo num palácio, mas a raiz do instrumento é popular, é para as pessoas estarem na esplanada a ouvir as peças e a reconhecer. É ao nível do chão que se ouve melhor o carrilhão..Ouve-se no Terreiro D. João V, virado para o Palácio. Das Quatro Estações ao Roberto Carlos. Costumo dizer que o carrilhão é o Spotify, a música está na cloud. Ouvimos de tudo. Há um grande repertório do século XVIII, idade de ouro do instrumento. No século XIX estava em declínio, mas no século XX, com o surgimento de uma mentalidade de restauro e conservação, foram recuperados instrumentos e adquiridos novos. Em Malines, um desses responsáveis foi o filantropo Rockefeller. Encomendaram-se muitos carrilhões nos EUA e compôs-se muito para o instrumento nos anos 1950, 60 e ainda hoje. No domingo de Carnaval, tocámos a Cidade Maravilhosa e samba. No dia 1 de março será o retomar dos concertos mensais dos 6 Órgãos em que o carrilhão da torre sul irá participar pela primeira vez com um recital de cerca de 30 minutos de receção ao público enquanto espera por entrar na basílica. O recital torna-se igualmente regular aquando da realização dos concertos de órgãos - pela primeira vez e como El-Rei D. João V desejou os dois magníficos conjuntos, sinos e órgãos, estarão lado a lado proporcionando uma animação e um espetáculo sem paralelo em todo o mundo..Onde se esconde o carrilhanista enquanto as pessoas ouvem? Conta-se que, um dia, quando o carrilhanista abriu a janela e agradeceu os aplausos, uma menina que assistia, vendo-o, entre os sinos e o relógio, achou que era o cuco a acenar. Existe, na torre norte, por cima do mostrador do relógio e por baixo dos sinos, uma cabina que protege o carrilhanista do som, já que estamos mesmo sob aqueles 53 sinos, que vão das nove toneladas aos quatro quilos. É lá que temos a consola, o teclado, controlado com as mãos e os pés. Existem relatos no passado de esta ser uma tarefa tão árdua que o carrilhanista tinha alguém para lhe fazer massagens musculares. Tocavam em calções e em roupa interior porque se passava muito calor ali dentro. Depois da última peça, aceno, guardo as minhas partituras e desço o mais rapidamente possível para confraternizar um pouco. É importante verem que o carrilhanista é de carne e osso e não um corcunda de Notre-Dame..Quem toca hoje o carrilhão do Palácio Nacional de Mafra? Tivemos cinco carrilhanistas belgas na inauguração e três portugueses. O histórico Francisco José Alves Gato, a Ana Elias, que também começou a sua formação ali em Mafra, e eu enquanto carrilhanista do palácio. Asseguro os concertos e um ciclo internacional em que vou convidar carrilhanistas internacionais em junho, julho e agosto. Entrámos numa nova era..Concerto de carrilhão Todos os domingos, às 16.00. Claustro sul do Palácio Nacional de Mafra Entrada livre