Ao ver o novo filme escrito e realizado por Aaron Sorkin - Os 7 de Chicago (Netflix) -, recordei-me das suas palavras, emocionadas e emocionantes, a 27 de fevereiro de 2011, ao receber o Óscar de melhor argumento adaptado por A Rede Social (The Social Network), a obra-prima de David Fincher sobre Mark Zuckerberg e as origens do Facebook. O seu discurso de agradecimento começou assim: "É impossível descrever o sentimento de receber o mesmo prémio que, há 35 anos, foi dado a Paddy Chayefsky por outro filme com a palavra 'network' no título.".Referia-se ele ao Óscar de melhor argumento original ganho por Chayefsky com o filme Network - Escândalo na TV (1976), de Sidney Lumet, título pioneiro na identificação das derivas populistas do espaço televisivo - valeu a Peter Finch o primeiro Óscar de interpretação (melhor ator) atribuído a título póstumo..Tratava-se de citar não apenas uma inspiração e um modelo de trabalho, mas de reafirmar a vitalidade de uma genealogia narrativa visceralmente americana. Chaeyfsky, argumentista e produtor (falecido em 1981, contava 58 anos), tem o nome ligado a vários títulos marcantes na evolução do classicismo de Hollywood, incluindo a sua contaminação por componentes vindas da área da televisão: Marty (1955), de Delbert Mann, será o símbolo nuclear de tal dinâmica..Neste contexto em que as incidências das eleições presidenciais nos EUA são assunto transversal em todo o mundo, vale a pena lembrar que esse país - consagrado pela história, e pela sua mitologia, com uma palavra derivada de todo um continente, "América" - continua a ser isso mesmo. A saber: uma impressionante máquina geradora de narrativas, sendo o cinema um dos domínios fulcrais da sua vocação..Não que o "cinema americano" possa ser pensado (ou apenas descrito) como uma entidade unificada e unívoca a que apomos uma classificação "positiva" ou "negativa". Deixemos isso para os maniqueísmos mediáticos em que nada mais existe a não ser uma guerra interminável entre "prós" e "contras" - para nos ficarmos pelo mais simples, lembremos apenas que não há maneira de conciliar a sofisticação dramática de um filme como Os 7 de Chicago com a agitação ruidosa da maior parte dos produtos saídos da fábrica de efeitos especiais da Marvel..Acontece que a história das narrativas cinematográficas americanas é tanto mais rica e contrastada quanto existe enredada com a história das convulsões sociais e políticas do próprio país. O génio de Aaron Sorkin manifesta-se também, por exemplo, na criação e escrita da série televisiva The West Wing/Os Homens do Presidente (1999-2006). Ou ainda nessa outra série, prodigiosa na exposição das tensões internas de um jornalismo que nunca abdica de problematizar o seu papel no interior da vida em democracia, que é The Newsroom (2012-2014)..O fascínio de Os 7 de Chicago é tanto maior quanto nele reencontramos uma conjuntura essencial para compreendermos uma América assombrada pela guerra do Vietname e, no limite, para pensarmos os valores, enunciados e práticas da lei democrática. A evocação do julgamento dos "7 de Chicago" (o título original é, aliás, The Trial of the Chicago 7) envolve, assim, um momento emblemático da história da democracia americana: a Convenção Nacional Democrata de 1968 que levou à escolha de Hubert Humphrey como candidato à presidência dos EUA (derrotado a 5 de novembro desse ano pelo republicano Richard Nixon)..Encenando o julgamento dos militantes presos na sequência de violentos confrontos com as forças policiais, Sorkin remete-nos para a dialética fundadora do imaginário democrático americano: ficamos a conhecer as profundas diferenças dos que foram a tribunal (incluindo Abbie Hoffmann, Tom Hayden ou David Dellinger), ao mesmo tempo que os identificamos como personagens de uma dramaturgia política que, em última instância, através dos seus desejos e traumas, configura um conceito de democracia. Ironicamente, Sorkin volta a afirmar-se no coração muito vivo das imagens: este filme (apenas) online pode valer-lhe, no mínimo, mais uma nomeação para os Óscares.