Cleópatra não terá piscado o olho ao entrar em Roma como Elizabeth Taylor nem se pareceria com Monica Bellucci, do mesmo modo que os antigos egípcios não andavam de lado, carregados de eyeliner, como no videoclip das Bangles (Walk like an egyptian). Mas brinque-se ou não com a imagem que temos desta civilização pré-clássica, a verdade é que esta ainda está contaminada pelos mitos alimentados pelo Cinema e Literatura. Para ajudar a pôr as coisas no seu devido lugar e a mostrar que, apesar dos milhares de anos de distância, os súbditos de Akhenaton e Ramsés II não eram assim tão diferentes de nós, a egiptóloga portuguesa Inês Torres acaba de publicar o livro Como é que a Esfinge Perdeu o Nariz? (edição Planeta). Nascida em Barcelos há 31 anos, é doutora em Egiptologia pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos (onde deu aulas nos últimos anos) e Investigadora Integrada no CHAM - Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa. É também fundadora e coordenadora do projeto de divulgação do Antigo Egipto no Instagram @umaegiptologaportuguesa, que pretende combater a desinformação sobre a Egiptologia e o Antigo Egipto através da transmissão de informação fidedigna em português e co-criadora (com Luiza Osorio da Silva e o Guilherme Borges Pires) do podcast "Três Egiptólogues Entram Num Bar"..Como é que a Esfinge perdeu o nariz é um livro de divulgação sobre o Antigo Egito muito focado na vida quotidiana das populações. Qual foi o seu principal objetivo? Quando nos debruçamos sobre esta civilização podemos focar-nos em muitos temas diferentes mas o meu principal objetivo foi humanizar estas pessoas e não tanto falar de empreitadas monumentais como as pirâmides ou a esfinge. Na verdade, as preocupações destas pessoas que viveram há milhares de anos não são muito diferentes das nossas, têm a ver com a sobrevivência, com o que se vai ou não comer no dia seguinte, com criar os filhos, com o bem-estar da família. Por outro lado, há no público uma tendência de pensar o Egito antigo como um todo, mas a verdade é que isso não faz qualquer sentido porque, vejamos, um egípcio que tenha vivido na época da construção da grande pirâmide nem sequer compreenderia o que estava a dizer um egípcio que vivesse no tempo de Ramsés II ou Tutankhamon. Há mil anos de diferença entre eles..É aquilo que nos separa da Idade Média, do ano 1000... Na verdade, sim, Cleópatra está mais próxima de nós, no tempo, do que da construção das grandes pirâmides. Se pusermos as coisas nessa perspetiva compreendemos que estamos a falar de uma realidade tão vasta que não pode ser cristalizada. Quero combater um pouco isso e também falar da vida real de pessoas reais em vez de estarmos sempre a discutir os mesmos lugares comuns..Os seus alunos de Harvard também tinham muitas dúvidas e ideias feitas sobre o tema? A maior parte deles sabe umas coisas muito genéricas aprendidas no Ensino Secundário. O que, para mim, foi muito bom. Faziam-me muitas perguntas relacionadas com o papel da mulher, com quem é que sabia ler e escrever ou como é que as pirâmides foram construídas.. Isto obrigou-me a investigar, o que é um desafio porque a informação que temos é muito fragmentária. Temos, por exemplo, 20 anos muito bem documentados sobre a cidade de Amarna, que foi construída por Akhenaton, mas os 20 anos seguintes já não o são. Por outro lado, temos também de estar conscientes que a informação escrita é-nos passada por uma elite que tinha acesso a uma educação formal..Como é que se contorna isso? Não é fácil, mas uma das formas possíveis é o recurso à arqueologia. Pode-se obter muita informação através da análise dos solos (sobre o tipo de sementes que cultivavam, por exemplo). Por outro lado, a análise de esqueletos humanos permite-nos saber que dieta é que as pessoas tinham, que tratamentos médicos recebiam, de que doenças sofriam, às vezes até que ocupação profissional desempenhavam..Falava-me há pouco do papel da mulher. A imagem veiculada pelo cinema dá-nos sempre a ver mulheres poderosas como Nefertiti ou Cleópatra. Imagino que a realidade fosse muito diferente. Varia muito ao longo das épocas e de acordo com as circunstâncias pessoais de cada uma mas, na verdade, já temos documentos de 3000 a.C que nos demonstram que as mulheres dispunham de capacidade jurídica para receber uma herança, bem como para a transmitir a outros. Comparativamente com outras culturas suas contemporâneas, talvez tivessem alguma liberdade em alguns aspetos mas menos noutros. Não podemos esquecer que a administração pública estava concentrada nas mãos dos homens..Os amantes de gatos geralmente gostam muito do Antigo Egipto, onde parece que estes animais eram muito valorizados. Até que ponto? De um modo geral, os animais são muito valorizados no Antigo Egito. Havia um sentimento de entreajuda entre pessoas e animais, embora não todos porque os hipopótamos e os crocodilos eram ameaças reais para quem vivia à beira rio. Ir lavar a roupa ao rio era um ato perigoso. Mas os animais domésticos eram muito estimados e isso é provado pela existência de tratados veterinários. Os gatos eram essenciais para caçar ratos e pequenas cobras e tinham um papel protetor em relação à casa e às colheitas. Não podemos dizer que eles adorassem animais mas associavam certas características deste ou daquele animal a uma determinada divindade, o que os levava a representá-la com a cabeça do referido animal. O deus sol - Rá - está no céu, por isso é-lhe atribuída uma cabeça de falcão. A deusa Bastet tinha cabeça de gato porque protegia as mães, as crianças e o lar..No seu caso pessoal, o que a levou à Egiptologia? Creio que esse gosto nasceu quando o meu pai me ofereceu um livro sobre o Antigo Egito, teria eu uns 9 anos. Sentei-me e li-o numa tarde, creio que me apaixonei pelo facto de uma civilização tão antiga não ser assim tão diferente da nossa. Claro que é outra geografia, claro que é outro tempo, outras crenças mas a humanidade estava lá. Uma das coisas que mais me interessou foi o conceito egípcio de maat, que também é uma deusa, e que se pode traduzir por justiça, verdade, ordem, paz. Uma pessoa que não tivesse feito maat na sua vida não tinha direito a uma vida eterna - estava condenada a uma segunda morte, que para os egípcios era o esquecimento..Também no seu livro refere que, ao contrário do que nós tantas vezes pensamos, não se pode tratar o Antigo Egito como uma civilização que acabou, que "caiu" como o Império Romano tomado pelos chamados bárbaros. Para os egípcios de hoje há uma continuidade entre as duas épocas... De tal maneira que ainda hoje se celebra um festival que, em traços gerais, é muito idêntico ao da Antiguidade. Não é uma reconstituição histórica, na verdade ele nunca deixou de acontecer anualmente, na Primavera. A retórica de que os egípcios da atualidade não se interessam pelo seu legado cultural só interessa aos ocidentais e aos radicais islâmicos Esse argumento serviu para que países como a Inglaterra ou a Alemanha trouxessem peças importantes para os seus museus com o alegado propósito de proteger a cultura deles, o que eles não conseguiriam fazer. Mas o que eu tenho visto é que as pessoas dão muito valor e têm muito orgulho no seu património e legado histórico..Como é que a esfinge perdeu o nariz? Inês Torres Editorial planeta 336 páginas