"A vida que não é digna de ser vivida tem de cessar"

Entrevista à filósofa e professora catedrática
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Não estranhe o leitor, ao ler esta entrevista, encontrar diferentes ortografias entre as perguntas e as respostas que se seguem. Maria Filomena Molder, filósofa e professora catedrática de estética, pediu ao DN que as suas respostas não aparecessem transcritas segundo o novo acordo ortográfico, com o qual está em profundo desacordo. Fala de "objecção de consciência". As perguntas, tal como acontece no jornal desde 2012, obedecerão ao novo acordo.

Lançou há pouco o livro Dia Alegre, Dia Pensante, Dias Fatais (escrito, claro, na antiga ortografia). Encontramo-la no seu escritório, em Lisboa. Antes de começarmos, explica um leve incómodo: por causa da disposição do espaço para as fotografias, pedimos-lhe que se sentasse numa cadeira bordada, que quase nunca é usada, por preservação ou reverência. Pertencia a Ana Hatherly, que lha deixou em herança. Nas estantes espreitam os seus autores, como Walter Benjamin, vizinhos de fotografias do seu marido, Jorge Molder. Em tudo o que diz há uma gravidade muitas vezes interrompida por uma gargalhada. Por exemplo: quando conta como uma professora de dança lhe arrancava os óculos da cara e ela deixava de ver. Silêncio. E uma gargalhada: "Parece uma cena do Charles Dickens."

Gostava de começar por esta imagem da capa, feita pela sua mãe. Fazia desenhos como este como quem rabisca ao telefone, distraída?

Não. Quando não tinha nenhum afazer, eu via-a desenhar.

Empenhava-se, portanto?

Era uma coisa que ela gostava de fazer, tenho a certeza absoluta, mas nunca lhe perguntei, porque, no fundo, é quase como se eu estivesse sempre a ver a minha mãe fazer aquele desenho, o que não é verdade. Mas aquele desenho faz parte da imagem que tenho da minha mãe.

Nunca conseguiu imitar este desenho?

Nunca. Isso exige uma perícia e um exercício muito grande. Fiz alguns que não estavam muito mal, mas nunca estavam muito bem.

Nunca perguntou à sua mãe qual era a técnica ou porquê esta figura?

Quando eu era pequena nunca lhe perguntei, e depois saí de casa muito cedo, e nunca mais voltei a ver a minha mãe fazer esses desenhos, claro. E só na velhice, quando ela começou a vir para minha casa, comecei outra vez a ver os desenhos, mas não com a mesma frequência, nem pensar. Tenho muito poucos, não sei o que é que ela fez aos outros, devia deitar fora.

Para ela não tinha importância?

Acho que isso devia ter importância. Deve ter a ver com qualquer coisa da infância dela e da relação com o pai, que fazia moldes maravilhosos para tectos de estuque. Estou em crer que tem a ver com isso.

Não são coisas muito figurativas.

Não, não. O maravilhoso neste papel é que está tudo a mover-se, é um fluido que está a correr sem parar. Isso impressionou-me imenso. Depois guardei-o muito bem guardado, e nunca mais me lembrei onde é que ele estava. Andei um ano à procura dele, porque eu queria que fosse essa a capa. Como atrasei imenso a edição deste livro, pois não pude revê-lo dentro dos prazos, isso foi uma sorte porque acabei por encontra-lo. Procurei em todo o lado. Ele estava tão bem guardado, tão bem guardado, dentro de um envelope, dentro de uma pasta de cartolina forte, de maneira que não pudesse de nenhuma maneira amarrotar-se. Está tal e qual como ela o fez.

Vem de uma família de mulheres, não é? Irmãs...

Irmãs, e avós. Infelizmente não conheci os meus avôs. Sempre sonhei conhecer os meus avôs. Sobretudo um, que era o pai da minha mãe, porque ouvia imenso falar dele.

Dos moldes?

Exacto. E grande músico, tocava muito bem guitarra. No fundo também era luthier sem ter essa profissão. Ele fez a sua própria guitarra. Era profundamente musical o meu avô.

Foram introduzidas nos livros pela vossa mãe?

E pelo meu pai. O meu pai lia muito e a minha mãe também. Do que eu mais me lembro da minha mãe é de ela cantar, e também contar histórias, mas a melhor a contar histórias era a minha avó, mãe da minha mãe. O meu pai era um homem muito lido, sabia várias línguas. Acho que desde pequena tenho uma sofreguidão, uma fome, e uma sede absolutas pela leitura. Não podia imaginar que não pudesse ler, estava todo o dia a ler quando era pequena, além de brincar muito. A partir de certa altura já deixei de brincar, isolei-me muito mais, então lia noite e dia, lia os meus livros, lia os livros dos meus pais, lia os livros das minhas irmãs, lia todos os livros que me caíam nas mãos. E na biblioteca do liceu havia livros muito bons. Lembro-me muito bem de ter lido A Peste do Camus muito novinha, tinha 14 ou 15 anos. O ensino era muito diferente do que é agora; a ideia de que as pessoas não podem ler certas coisas, apesar de haver tanta censura, não era tão forte como agora, porque temos uma justificação didáctica e pedagógica. Dantes era só política, o que pelos vistos não é tão mau do ponto de vista de quem lê. Além disso, nós líamos tudo o que queríamos, porque havia sempre pessoas que vendiam os livros proibidos. Sempre, sempre, sempre.

Conta que por vezes as suas filhas adormeciam com o Lamento de Dido, ária de Dido e Eneias, de Purcell. Na forma como as pessoas educam as crianças agora isso poderia chocar.

Poderia parecer uma agressão às crianças, não é?

Sim, adormecê-las com uma música de alguém que se está a despedir da vida e se entrega à morte.

Vou-lhe dizer uma coisa: elas sempre ouviram toda a música que nós ouvíamos, e elas próprias é que pediam, não era eu que escolhia forçosamente. Lembro-me de elas ouvirem o Pithecanthropus Erectus, do Charles Mingus, que era uma música dificilíssima. A minha filha mais nova, a Adriana, lembro-me que muito pequenina, com seis anos, tinha um particular amor por aquela peça. Lembro-me muito bem de ouvirmos constantemente Dido e Eneias, sempre amámos essa ópera, mas também ouvíamos o Porgy and Bess [musical de Gershwin], que elas adoravam. E depois ouvíamos muito jazz, e elas gostavam sempre de ouvir jazz. Adormeciam com essa música, elas pediam. Sim, não corresponde a nenhum princípio pedagógico [ri-se]. Isso não. A pedagogia e a didáctica tornaram-se verdadeiros tormentos para a vida de uma criança. A espontaneidade está muito maltratada, a pessoa não confia na sua própria intuição e desiste de ter atenção e de se concentrar no que tem à frente, vai ler nos livros o que é que há de fazer. É um erro fatal. As crianças querem entrar no mundo, na vida, pelos canais que são próprios da vida e não por uma artificialidade condicionada.

Isso foi uma decisão consciente que tomou?

Não, não. Sabe que, por exemplo, lembro-me de quando ia a casa de amigos meus que tinham filhos, as crianças comiam sempre na cozinha, ou já tinham comido. Isso nunca aconteceu em nossa casa. Elas comiam sempre connosco, qual fosse a idade que tivessem, e depois a partir de certa altura iam-se deitar, porque já era muito tarde. Que consequências é que isso teve? Elas estavam sempre com muita atenção às conversas que os pais tinham com os amigos e que não eram conversas escolhidas propositadamente para elas. Ocorriam, como todas as conversas entre amigos; elas ouviram coisas que de outra maneira não tinham ouvido, e eu não lhes poderia ter ensinado aquelas coisas que também nasciam de uma espontaneidade e dos interesses que cada um tinha, os amigos não são todos iguais, e isso acho que foi um bem para elas. Não há substituição para isto.

Na Filosofia podemos entrar nas coisas antes de as ter vivido e escrever sobre elas, pensá-las, ou é preciso esperar para pôr lá a pele e então começar?

É capaz de ser possível admitir os dois casos. Penso que em Filosofia a tendência é antecipar, com muitos riscos, porque pode cair na desonestidade, pode entrar numa retórica imaginativa aparentemente muito rigorosa, que desemboca numa espécie de vazio. Nos casos melhores isso não acontece. Por exemplo: penso em Kant, em relação à arte. Apesar de tudo aquilo que ele diz sobre arte estar assente numa experiência pobríssima no que se refere ao contacto e ao exercício diário e ao amor pela arte, ele consegue dizer coisas sobre a arte que muitas pessoas que têm muita experiência dela nunca conseguiriam dizer. Isto é um poder filosófico. É o poder da antecipação compreensiva. Vendo pouco e vendo mesmo o que não é o melhor, ele consegue perceber a condição interna daquilo, perceber a relação connosco. Isso é extraordinário. Mas há casos em que o autor, estou a pensar em Nietzsche, é um viajante. Abandonou tudo: abandonou a universidade, abandonou a casa, para além da casa dos pais nunca chegou a ter casa fixa, e toda a vida se tornou um viajante, um amigo do movimento, de andar. É muito profunda a relação dele com a natureza, e também com a arte, com a literatura... Ele leu tudo o que havia para ser lido do ponto de vista literário, quer poesia, quer romance, quer filosofia, quer textos de natureza científica, e tudo absorveu para aquilo a que queria chegar. Aí eu acho que há sempre uma antecipação no sentido: há uma pré-orientação da nossa vida que não foi feita por escolha, e essa pré-orientação ou é preenchida ou não é preenchida, conforme nós fazemos isto ou fazemos aquilo. À antecipação tem de estar ligado uma capacidade de ser afectado muito, muito, muito profunda.

E isso é nos dado?

É, mas temos de exercitá-lo. A capacidade de afecção de Nietzsche é terrível. Fere-o constantemente. Ele é ferido, ele sofre, tem uma sensibilidade apuradíssima, mas essa afecção, essa capacidade de ser afectado, e de umas vezes conseguir absorver e de outras vezes não conseguir absorver, dá essa vivacidade, essa instabilidade, essa riqueza, essa espécie de inesgotabilidade e, ao mesmo tempo, a sensação que nós temos de nunca conseguirmos reconduzir a uma teoria bem constituída o pensamento de Nietzsche. Ele é suficientemente prudente para perceber que essas afeções que recebe, absorve e não absorve, e que transforma e transmuta no seu próprio pensamento, são sempre parciais. Somando as parcialidades não temos um todo. A parcialidade tem a sua própria riqueza, e, portanto, não convém pô-las a lutar umas contra as outras. Agora cada vez gosto mais da parcialidade. Não da parcialidade ingénua e/ou maldosa, mas da parcialidade que percebe que o todo nunca se pode desenhar e tem que se amar essa fraqueza para o tesouro aparecer, porque o tesouro está nessa parcialidade.

Esse é um exercício de humildade, de conhecer a própria medida?

Exactamente, de conhecer a sua medida, por um lado, e ao mesmo tempo perceber que em cada limite há uma desmedida, há uma riqueza extrema.

Isso está ligado a um tema que aparece muitas vezes no que escreve: a alegria contraposta à lucidez? É um tema que lhe é caro?

Sim, é muito caro. Nós não podemos ignorar a escuridão, o deserto, os perigos, o terror da vida. Acho que a Clarice Lispector foi quem melhor percebeu isso, porque diz que pelo menos, e é tudo podemos aceitar isso. Não podemos deitar fora a condição, ou libertarmo-nos dela, mas podemos aceitá-la, e daí pode vir um sentimento, uma emoção forte, de alegria. A mortalidade é inevitável, mas nós podemos amar a vida enquanto mortais.

É mais fácil escrever sobre isso do que viver assim?

Sem dúvida. É mais fácil escrever. No entanto também podemos exercitar a alegria. O Alain ensina muito. Por exemplo: se estamos muito acabrunhados, tentemos fazer assim [ergue os ombros]. Não evita que fiquemos acabrunhados e que entremos em angústias tremendas: como é que se pode evitar? Tínhamos um condão qualquer, uma chave que mais ninguém tinha... Voltando ao escrever e viver: há pessoas que têm mais dificuldades do que outras em aceitar que são mortais, mas ninguém aceita muito bem. E tudo depende disso, a nossa vida toda depende disso, de sermos mortais. Muito se escreveu sobre isso e se continuará a escrever, mas escrever não é viver. Não tem nada a ver. A Clarice Lispector era, por aquilo que se lê nos seus livros e por coisas autobiográficas e biográficas, uma pessoa extremamente poderosa, atacada por uma angústia sem fim. O esforço que ela fazia, na escrita e na vida, para, de alguma maneira, dar forma àquela angústia, transformá-la noutra coisa, é como tirar de um mal um bem, ou descobrir que nesse mal há um bem. Se não tivéssemos febre não percebíamos certas doenças que temos. Não sei se se pode extirpar a angústia da nossa vida, desconfio que não. Como diz o Kierkegaard, que é um autor que eu não estudo muito: "A angústia faz-nos dançar."

Quando pensa na sua vocação, vê-se a escrever ou a dar aulas?

Vejo-me a dançar.

Queria ser bailarina, não é? Foi um problema de saúde que a afastou?

E também já tinha 15 anos, já não era boa altura.

Quando é que descobre a dança? Em que contexto?

Descubro a dança no Cavaleiro Andante, ainda não sabia ler. Era uma história de uma rebelde irlandesa, de origem nobre e que tinha uns sapatinhos de bailarina, com aquelas fitinhas, e que saltava e corria para avisar toda a gente que iam ser atacados ou por piratas ou por ingleses, disso já não me lembro. Para mim ela era a bailarina por excelência, era a leveza, também era um sonho infantil que eu acho que todas as crianças têm: saltar, por exemplo, de um monte para um monte, de uma colina para uma colina. Ela saltava quase precipícios, porque eram zonas rochosas, perto do mar, para mim isso tudo tinha que ver com a dança, e sempre que podia ver dança, via.

Chegou a dançar, a ter aulas?

Sim, cheguei a ter aulas no Conservatório e depois no São Carlos.

E era boa?

Não.

Não tinha aptidão?

Acho que tinha medo de não fazer bem, e fazia imenso esforço para fazer, mas sobretudo no São Carlos, onde tínhamos uma professora de origem russa, extremamente agressiva. Eu tinha tanto medo dela que fazia quase tudo errado. Além de que eu via muito mal e tinha óculos, e ela tirava-me os óculos com uma grande brutalidade, porque dizia que as bailarinas não usavam. Portanto eu não via nada. Parece uma cena do Charles Dickens.

E conseguiu dançar depois disso?

Consegui. Fiz uma coisa com 17 anos, com colegas da faculdade, com a minha irmã mais nova, a Maria do Carmo, e com outros amigos. Concebemos em conjunto, mas eu é que fiz a coreografia. Era um espectáculo que tinha teatro, tinha dança contemporânea eu adorava dança contemporânea , canto. Um amigo fez uma peça de teatro daquelas muito revoltadas contra a vida, e depois fomos falar a vários liceus, a ver se podíamos fazer lá o espectáculo, mas veio uma resposta da censura riscando a peça de teatro toda, e então nós decidimos que não íamos fazer em lado nenhum, claro, porque era impossível. Mas na altura, em Belém eu ainda ia à Igreja nessa altura , era o tempo do padre Felicidade Alves, que entrou em litígio com as entidades religiosas (era muito activo do ponto de vista político, foi proibido de dizer missa e tudo). Os outros padres, amigos e colegas, eram pessoas muito abertas, então deixaram-nos fazer o espectáculo nos claustros dos Jerónimos. Fizemos duas vezes. Na primeira noite, estava meio cheio, mas da segunda, tal foi o entusiasmo, estava a abarrotar, nem havia lugares sentados. Então imagine a ousadia que eu tive, coreografei e dancei Le Sacre du Printemps do Stravinsky, com três raparigas e um rapaz.

Lembra-se da sensação? Foi libertador?

Lembro-me, foi muito libertador, acho que nasci para coreografar.

E depois nunca mais teve vontade?

Não. Tenho muito jeito para mordomo, gosto de arrumar roupa, pendurar os mordomos não penduram roupa, dizem onde se deve arrumar, eu às vezes digo outras vezes arrumo , e de pôr as coisas em ordem. Imagine que esta sala agora tinha todos os livros no chão, tudo tombado É aquela coisa da Branca de Neve, tenho essa tendência. Não sei se iria ficar igual, mas sou capaz de pôr as coisas de maneira que ninguém pode acreditar que daquilo que estava ficou aquela consequência.

E o que está a dizer é que isso é uma espécie de coreografia?

É, é uma espécie. A dança é uma disposição do corpo dos seres humanos para a leveza, não é um sistema de regras, é uma disposição para o ritmo, e para a ligação de uma coisa para a outra, e tem a ver certamente com a força da gravidade, com a maneira de lutar contra a força da gravidade, e de fazer da força da gravidade um aliado, tirar-lhe aquilo que pode constituir uma elevação: como também os funâmbulos, maravilhosos, que andam pela corda, acho que isso é das coisas mais maravilhosas que há no mundo.

Fazer aquilo que não fomos feitos para fazer?

Mas que o nosso corpo é capaz de fazer, essa luta constante contra a gravidade. A posição ereta é uma posição anormal do ponto de vista do equilíbrio. Andar é das coisas mais perigosas que existem. Estamos sempre prestes a cair e inventámos maneiras de cair, a dança é uma delas, mágica. E tudo tem a ver com os pés. Nós só nos levantámos por causa dos pés, como libertámos a mão por causa dos pés. O André Leroi-Gourhan, que eu amo profundamente, o paleontólogo, que sempre estudei, tem um livro que se chama Mécanique Vivante, onde explica o prodígio de nos erguemos, e o difícil que isso é. Isso fez com que também a nossa testa pudesse aumentar e o nosso cérebro se pudesse desenvolver. É tudo por causa dos pés, já viu? Portanto, a dança é a coisa mais natural, depois de andar. Infelizmente não se vêem fazer hoje em dia na rua as invenções das crianças, dos jogos de saltar, de correr, suspender a corrida, as danças de roda; dantes víamos as crianças todas brincar na rua. Isso empobrece não só o corpo como a inteligência, a vida inteira.

Estar parado? Preso?

Por isso é tão impressionante esse filme do Sokurov sobre o Fausto de Goethe, porque nós percebemos que o Sokurov viu uma coisa que Goethe via muito bem na vida, mas que nem toda a gente vê no Fausto: é que os homens estão presos, e prendem tudo. Lembra-se que eles passavam sempre por umas ruas que tinham uns arcos estreitíssimos, e estavam sempre todos a arrastar-se para passar e todos os animais estão presos, até o gato, todos estão presos naquele filme. Acho que nunca vi nada tão destrutivo, no sentido de perceber a mutilação da vida a que o homem se vota, em relação a si próprio, a autodestruição, e em relação a tudo o que há à volta, a crueldade, essa prisão está ligada a uma grande crueldade: impedir o movimento, o gato está dentro de uma gaiola, e os pássaros, e os homens dentro das gaiolas, todos, todos. E depois há um pequenino fragmento-verso que o Fausto diz logo no princípio, e não volta a repetir, ele diz aquilo e passa à frente, e o Sokurov pôs o Fausto a repetir isso três vezes: "a eterna cantiga", der ewige Gesang. E "a eterna cantiga" é a dor, é sentir-se preso, é não conseguir amar, essa é a eterna cantiga. Mas quando nós lemos o Fausto não se dá por isso, passa-se à frente.

Há perguntas que gostava de pôr a alguns autores?

Nunca quero perguntar nada a ninguém. Isto se calhar é uma coisa de orgulho, minha: quero descobrir, não quero perguntar. Depois às vezes dizem: "Olha que não era bem assim". Então eu aprendo, e se puder corrigir, corrijo. Vou-lhe dizer uma coisa que me disseram há pouco tempo, fiquei muito impressionada. A Isabel Corte-Real, que além de ter as funções públicas que nós conhecemos no ministério da Cultura, e de ter tido sempre responsabilidades culturais, na Culturgest e noutras instituições, é uma grande marinheira. Ela viu o tal filme, Todas as Cartas de Rimbaud, estou a falar de Kant, não me estou a escudar atrás de Kant, e estou a aceitar o que ele diz: no mar alto, em plena tormenta, o marinheiro não vai ter experiências estéticas (estava sobretudo a pensar no sublime). E ela encontrou-me no outro dia, e disse-me: "Filomena, tenho estado a pensar numa coisa que disse. Eu já passei por uma tormenta terrível" ela passou por várias "e de repente, no meio daquele terror e no meio daquele esforço para sobreviver, eu percebo que há um lampejo de beleza naquele mar". Quanto dei aquele exemplo no filme, estava a imaginar uma pessoa no mar alto como se vê nos contos e nos romances do Joseph Conrad ou do Stevenson: nós aí não temos experiência estética. Mas ela disse: "De repente nós vemos qualquer coisa de uma beleza insondável. Deve ser uma coisa de um milionésimo de segundo, que passa diante dos nossos olhos."

No livro diz que não é a leitora ideal, mas o facto de querer descobrir por si própria, como dizia, acaba por aproximá-la de um leitor ideal?

Talvez. Tenho computador, e às vezes quero saber qualquer coisa e vou à procura no Google, mas isso não é a minha natureza. A minha natureza é não procurar. E isso não é muito bom, muitas vezes, sabe?

Porque espera que isso a encontre?

Exacto. Espero encontrar-me com isso, e se não me encontrar... Claro que tenho de estudar, mas isso é outra coisa. Se quero encontrar, não posso procurar no sentido de fazer uma pergunta, e também não posso andar à procura como uma coisa que perdi. Aliás, quando perco uma coisa, nunca a encontro se vou à procura. Já desisti, e aceito, como a Etty Hillesum, que um dia essa coisa me há-de cair nas mãos, como o desenho da minha mãe: um dia caiu-me nas mãos, não foi por ter procurado que o encontrei. Eu tirava e tirava todas as coisas da gaveta e voltava a pôr. Wittgenstein fala muito disso, isso é o que os filósofos fazem: tiram tudo das gavetas, tornam a pôr, tornam a tirar, voltam a pôr, e passam a vida naquilo, sem encontrar nada que valha a pena, ou pelo menos não encontram aquilo que pensam que iam encontrar, a coisa perdida. Porque a coisa perdida um dia vem ter connosco: nós abrimos inadvertidamente a gaveta, numa certa posição, e, num sítio onde não tínhamos visto bem, aparece, ou então não era naquela gaveta, ou então estava dentro de um livro, e por aí fora, no caso do desenho.

Revê-se nessa imagem de Wittgenstein?

Revejo.

Logo no primeiro capítulo, sobre a noite, cita o Walter Benjamin a dizer que as obras de arte são uma espécie de estrelas na noite, que não nos salvam dela. Mas consolam?

Podem consolar. Lembro-me de a Amália dizer ela teve um cancro no cérebro, e foi para os Estados Unidos decidida a matar-se que não se matou por causa do Fred Astaire. Isso é incrível. Fiquei varada. Ela ficou tão maravilhada com aquela leveza dele. Devo dizer que o Fred Astaire é um dançarino exímio, mas não me diz nada. Prefiro o outro. Como é que se chama o outro? Maravilhoso, do Dançando à Chuva. Gene Kelly. Sou fã do Gene Kelly, do Fred Astaire não. Nas Demoiselles [de Rochefort, de Jacques Démy] nós só queremos vê-lo. Ele entra várias vezes a dançar na rua. Basta fazer assim com a mão e o mundo muda, tudo muda, todos os outros estão a dançar muito bem, mas ele não dança muito bem, é outra coisa. O Fred Astaire dança muito bem, mas não é outra coisa.

Executa?

Executa, é leve, é versátil, é rigoroso. Mas não é aquela magia pura do Gene Kelly. Mas não foi para o Gene Kelly, foi para o Fred Astaire. Sempre gostei da Amália e gosto, adoro, e acho que ela é brilhante, é de uma inteligência, aquela inteligência que vem da genuinidade e da força que ela tinha, da capacidade de ser afectada pela vida, e da voz. A voz dela só pode ser a de uma pessoa muito inteligente, o que ela faz àquela voz. E era tão bonita, ela tinha tudo para mim. Portanto, pode consolar, mas apesar disso eu estou de acordo com o Benjamin, acho que, quando estamos na agonia, a mão de alguém pode-nos ajudar, talvez que a música também possa ajudar (Benjamin não está a pensar na música.)

Neste livro fala de Montaigne, sobretudo acerca da morte do amigo, e de como escrever se torna como dar o testemunho disso que se percebeu que se é. Para a Filomena escrever também é isso? Dar testemunho de qualquer coisa que se viu, se compreendeu?

Sim, sem dúvida. Hannah Arendt diz que a Filosofia é isso: ter visto. É o acto em realização de ter visto. E ela pensa isso através dos Gregos. Ela percebeu muito bem a filosofia, seguramente a poesia também, mas neste caso estava a falar da Filosofia. É o passo que vai de ver a ter visto, a transformação que se dá.

Sendo que esse ver e ter visto pode ser muitas coisas? Pode vir simplesmente da leitura?

Pode, claro. Pode vir de um encontro inesperado, pode vir de uma pequena queda.

Começou a estudar Filosofia cedo.

Sim, no liceu, com 15 anos.

Nunca sentiu que aquilo ainda não era para si?

Aquilo ainda não é para mim.

Mas nunca adiou?

Não, nunca adiei. Achava que entrava, mas o meu lugar não era claro lá dentro, eu estava a entrar, mas não sabia qual era o meu papel.

Começou por ensinar Filosofia Medieval.

Sim, uma ousadia muito grande. Apesar de eu ter estudado muito bem a Filosofia Medieval na faculdade, não tinha estudos suficientes para ensinar Filosofia Medieval e ensinei. Estudei o melhor que pude, e fiz o melhor que pude, mas também passei logo para Estética a seguir.

Quando, passados anos, volta a dar Filosofia Medieval já vai buscar o Dante, não é? Já se aproxima mais do seu lugar?

Exactamente, é isso mesmo. São Tomás de Aquino também ajudou, sobretudo no que escreveu sobre os anjos. Os anjos têm uma importância muito grande, a relação entre anjos e sombras em Dante. Mas é isso mesmo, acho que acertou: Dante é o meu lugar na Filosofia Medieval. Santo Agostinho também.

Para o homem está sempre tudo em jogo? Podemos cumprir-nos ou não?

Claro, todos os grandes pensadores perceberam isso.

Podemos falhar a existência?

Sem dúvida.

E para a Filomena o que seria falhar a existência?

Nós estamos sempre a falhar a existência, numa certa medida. Se temos muita consciência de que falhamos demasiado, a nossa vida torna-se uma tortura; a minha vida não é uma tortura.

Daí a alegria de que falávamos?

Sim.

A descrição que faz do Fausto do Sokurov, onde todos estão presos, tem que ver com a sua posição em relação à eutanásia, em que se opõe a uma prisão a uma determinada forma de vida?

Acho que tem. E tem que ver também com a ideia que tenho do que é um ser humano a viver, e com a ideia que tenho de que a dor não nos faz melhores. Se a dor passar torna a nossa vida mais profunda, mas não nos faz melhores. Se a dor não passar, não só não nos torna melhores, como é uma espécie de um castigo que a natureza nos quer fazer, ou outra entidade qualquer. Uma doença incurável que produz dor, e que produz sobretudo uma auto-imagem absolutamente destruidora nos pontos sensíveis daquilo que cada um pensa que é estar vivo, não é suportável para mim. A Hannah Arendt fala disso, que há coisas piores do que a morte: uma vida indigna, uma vida que já não é vida. Isto não significa que em qualquer situação e em qualquer caso as pessoas possam cometer a eutanásia, elas próprias ou alguém por elas. Isso tem de ser muito bem estudado. O projeto que li e conheço é do Bloco de Esquerda; não sendo eu do Bloco de Esquerda, até fui a reuniões, acho que está muito bem feito e que está feito de tal maneira que torna dificílima a realização da eutanásia. Tem tantos patamares, de vários médicos, de acordos entre eles, etc. Sempre pensei, desde muito novinha, que a vida que não é digna de ser vivida tem que cessar. E não posso obrigar ninguém a viver nessa situação. Sobretudo é isso que me apavora: que os pedidos de alguém não sejam respondidos. Que se veja obrigado a aceitar a vontade alheia e uma vontade que é muito formalista, que está assente ou em legislação ou em pretensos princípios morais que, neste caso, não se aplicam, claramente. Acho que é uma espécie de crueldade disfarçada de legitimidade e de princípios da medicina e coisas assim. Curar é a função do médico. E quando não é possível curar qual é? Ajudar a morrer. Essa é a minha resposta: ajudar a morrer, estar ao lado, não fugir, não dar uma injeção e fugir.

Pediu para as suas respostas não aparecerem escritas com o novo acordo ortográfico. Porquê?

Sou contra o Acordo Ortográfico desde 1986 e tive esperança de que ele nunca fosse aplicado. Apesar de todas as pessoas que têm algum saber linguístico neste país, e literário, se terem manifestado através de pareceres muito negativos acerca desse acordo, ele foi para a frente. E durante vários anos foram dezenas milhares de portugueses que se opuseram das mais variadas maneiras, mas nada disso demoveu nem os nossos deputados (com honrosa excepções) nem os nossos governos nem os nossos presidentes. Tudo o que nos prometeram com este acordo, que a nossa língua se ia tornar mais universal, etc., não sei bem como, foi pelo buraco do lavatório abaixo. O que nós vemos é um desleixo crescente e verdadeiramente assustador com a ortografia. São poucas as pessoas que ainda sabem como é que se escreve. Mesmo pessoas que sabiam muito bem como se escreve, como os revisores do Diário da República, já não sabem, e chegam a escrever "facto" sem "c", porque é muito difícil assimilar o acordo, ele está muito mal redigido, muito mal pensado: parece um texto escrito por uma pessoa pouco inteligente. Causa-me repulsa ter de obedecer a essa imposição, é quase uma objecção de consciência. Acho que há um direito à desobediência civil quando o cidadão sente que, na imposição legal, há um atentado verdadeiro à sua liberdade, o que é o caso, e ao amor que temos pela nossa língua e a sua ortografia.

Maria Filomena Molder é filósofa e professora catedrática de Estética, área da Filosofia que lecionou na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa. Queria ser bailarina, mas acabou por estudar Filosofia. É casada com o artista Jorge Molder e mãe de Adriana, artista plástica, e Catarina, cantora lírica. Acaba de publicar uma nova obra Dia Alegre, Dia Pensante, Dias Fatais (Relógio d'Água), que se junta a Rebuçados Venezianos ou A Imperfeição da Filosofia. Entre os seus autores de eleição contam-se Dante, Goethe, Wittgenstein ou Walter Benjamin.

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